Embora o piano seja o instrumento tradicionalmente associado ao trinômio mulheres, música e século XIX, sabe-se que o violão foi amplamente cultivado entre as moças pertencentes às camadas mais privilegiadas da sociedade brasileira. Inserido no conjunto das prendas domésticas — habilidades esperadas das mulheres, como bordar, pintar e cantar —, o instrumento oferece a vantagem da portabilidade, sendo uma excelente opção para acompanhar o canto. No entanto, reconstruir a história dessas mulheres e entrar em contato com algo da sonoridade por elas produzida ainda é um desafio, pois, além da marginalização histórica, restam pouquíssimos vestígios desses legados.
Maria Norberta Romero foi uma das pioneiras do violão brasileiro, mas, como a maioria das mulheres, sua trajetória foi marcada pelo apagamento. Sua atuação se limitou ao ambiente doméstico, pois esse era o espaço reservado às mulheres naquele período. Ainda assim, sua produção foi registrada pela imprensa, o que reforça a ideia de que o direito à memória está intimamente ligado à classe social.
Criada por seu tio, Mello Moraes Filho, intelectual e folclorista influenciado pela geração de 1880, Maria Norberta cresceu em um ambiente que valorizava a identidade cultural brasileira. Ela atuou ao lado de importantes figuras como Sílvio Romero, outro intelectual e folclorista, Melchior Cortez e Souza Imenes — dois proeminentes nomes do violão no Rio de Janeiro — e foi aluna de Aníbal de Castro. Seu repertório mesclava clássicos como Paganini e Chopin com as modinhas e lundus populares da época, evidenciando o ecletismo, uma característica marcante do violão cultivado no Brasil. As peças publicadas aqui, com a cuidadosa revisão de Celso Faria, são oriundas de várias fontes e destacam a versatilidade de Maria Norberta. São arranjos para violão solo de valsas e mazurcas, além de acompanhamentos de modinhas e lundus, evidenciando sua atuação como solista e acompanhante.
Nos últimos vinte anos, os campos de estudos de gênero e relações étnico-raciais têm auxiliado na revisão do papel da mulher e dos demais grupos silenciados estruturalmente na música, o que tem possibilitado a reabilitação de obras e trajetórias obliteradas. Nunca é demais salientar que reconstituir o papel de mulheres como Maria Norberta Romero, vítimas de longos processos de exclusão, muitas vezes tácitos e naturalizados, possibilita uma percepção mais acurada das práticas sociais envolvidas em nossos campos de estudo. Este é um dos motivos que faz com que todo esforço em recuperar vestígios dessas atuações seja valioso. Portanto, a presente publicação não é apenas pioneira e necessária no sentido musicológico, mas é, também, essencial para a reconstrução das nossas práticas enquanto sociedade. Agradecemos ao empenho de Jorge Mello e a iniciativa de Ivan Paschoito de trazer à luz esta personagem e um pouco da sonoridade por ela produzida, nos possibilitando reabilitar algo de sua obra e conhecer sua história.
Flavia Prando
verão de 2025
SOBRE JORGE MELLO
Jorge Mello é físico (Bacharel e Mestre pela UFRJ) e atuou como professor da UFRJ de 1986 a 2016. Nessa instituição coordenou vários projetos culturais nos primeiros anos da década de 1990, dando também início ao projeto Violão Brasileiro. Apaixonado por esse tema, foi consultor do site Acervo Digital do Violão Brasileiro, onde escreveu diversos verbetes. Ministrou o curso Os Pioneiros do Violão Brasileiro no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP, em março de 2018
SOBRE CELSO FARIA
Celso Faria é o violonista, especialista em Práticas Interpretativas (UEMG) e mestre em Performance Musical (UFMG). Possui destacada atuação como recitalista de violão solo, em diversificadas formações camerísticas ou ainda como solista orquestral. Tem mais de 180 obras, originais ou arranjadas, dedicadas a ele. Gravou sete CDs e diversos programas para rádio, televisão e internet, foi responsável por várias primeiras audições. Revisou e dedilhou o volume José Augusto de Freitas: dez obras originais para violão, publicado pela editora.
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