Por Pauliane Amaral e Alessandro Soares
Considerada uma das boas promessas da nova geração do violão brasileiro, Mayara Amaral desenvolveu uma inovadora pesquisa de mestrado que evidencia a participação da mulher no cenário da composição musical brasileira para o instrumento. A violonista também foi professora da rede municipal de ensino de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Seu nome se tornou símbolo nacional para a discussão de gênero no mundo violonístico e da luta contra o feminicídio.
Filha do oficial de justiça Alziro Lopes do Amaral e de Ilda Cardoso, Mayara Amaral nasceu em Sete Quedas, em Mato Grosso do Sul, numa família de músicos diletantes. O pai e o avô materno José Cardoso tocavam violão, enquanto o avô paterno Tomás Aquino do Amaral tocava acordeon. Mayara começou a estudar violão aos 13 anos, depois que a família se mudou de Ponta Porã – cidade que faz fronteira com o Paraguai e onde ela passou grande parte da infância – para a capital Campo Grande.
Migrando do violão popular para o erudito, concluiu o curso de graduação em música na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em 2011, tendo Marcelo Fernandes como um de seus professores. A peça que escolheu para tocar no processo seletivo foi Valsa Brilhante, do compositor paraguaio Augustín Barrios, o que mostra a maturidade precoce da musicista e sua preocupação em prestar tributo às suas raízes fronteiriças.
Durante sua breve e produtiva carreira, Mayara participou de master classes e cursos de aperfeiçoamento com alguns dos mais importantes professores e violonistas do Brasil e do mundo, como Leo Brouwer, Mario Ulloa, Fábio Zanon, Edelton Gloeden, Gilson Antunes, Eduardo Meirinhos, Franz Halàsz e Judicael Perroy. Também em 2011, obteve o 2o lugar no Prêmio Campo Grande de Música de Concerto, na categoria Violão Solo – Adulto. Em 2014, ganhou Menção Honrosa no VIII Concurso de Violão da FITO.
De 2015 a 2017 fez mestrado em música na Universidade Federal de Goiás, sob orientação de Eduardo Meirinhos. Defendida em março de 2017, a dissertação A mulher compositora e o violão da década de 1970: vertentes analíticas e contextualização histórico-estilística é inovadora por apresentar perfis biográficos e analisar a obra de cinco compositoras brasileiras compostas na década de 1970.
As compositoras analisadas por Mayara foram Lina Pires de Campos (1918-2003), Adelaide Pereira da Silva (1928), Eunice Katunda (1915-1990), Esther Scliar (1926-19978) e Maria Helena da Costa (1939). Assim, a pesquisa traz o diferencial do recorte de gênero, ao evidenciar a participação da mulher no cenário da composição musical brasileira para violão. E também por dar visibilidade a obras pouco conhecidas.
Virtuosa, sua maneira de estudar e interpretar é fartamente elogiada por professores e amigos profissionais, como pode ser conferido nos depoimentos que constam neste verbete.
Mayara integrou o Duo Caazapá (o nome faz referência à outra peça de Augustín Barrios), juntamente com Pieter Rahmeier, que juntos integraram a primeira formação do Quarteto Toccata.
Para além do cenário da música erudita, Mayara ainda integrou a banda Pétalas de Pixe, formada pelo músico Jerry Espíndola e pelas musicistas Priscila Corrêa, Jane Jane e Ju Souc. Mayara também estava ensaiando para estrear com a banda Vacas Profanas, formada apenas por mulheres e que continha em seu repertório músicas de teor feminista como Mulamba, da banda de mesmo nome, Vaca Profana, de Caetano Veloso e Pagu, de Rita Lee.
A última apresentação oficial de Mayara foi o concerto de defesa do mestrado realizado na Escola de Música e Artes Cênicas (Emac) da Universidade Federal de Goiás. Na ocasião, Mayara interpretou peças compostas pelas mulheres que form alvo da pesquisa. Algumas dessas peças resgatadas e estudadas por Mayara nunca haviam sido executadas em público.
Como professora, Mayara começou a dar aulas de violão aos 15 anos de idade e lecionou em várias escolas da rede municipal de Campo Grande. O último lugar onde ensinou foi na Escola Professor Arlindo Lima.
Foi brutalmente assassinada em 25 de julho de 2017, em Campo Grande. Desde então, o nome da violonista tem recebido uma série de homenagens por seus alunos, colegas músicos e professores.
Depoimentos
Para se ter uma maior dimensão sobre o talento da violonista e pesquisadora, entrevistamos alguns dos professores e colegas que acompanharam a trajetória dela. Segundo Marcelo Fernandes, Mayara tinha aquele talento deslumbrante e uma sonoridade que saía quase sozinha. “Quando era minha aluna de graduação, ela tinha aquelas dificuldades que se desatam como que em um passe de mágica. Sempre foi um sonho ser professor dela. Ela também tinha um tipo de expressão musical muito especial, direta. E o som dela era meio líquido, fluía”.
De acordo com Eduardo Meirinhos, Mayara se mostrou sempre uma pessoa compromissada e extremamente inteligente diante de todas as tarefas que lhe foram oferecidas. “Toda a insegurança e imaturidade que demonstrou nos primeiros encontros foram soberbamente ultrapassados e dominados num espaço de dois anos. Nesse período, ela se transformou de uma violonista mediana para uma profissional e saiu de uma mentalidade de graduação e se tornou uma pesquisadora, levantando uma bandeira de gênero muito grande, dentro do movimento feminista.”
Já o violonista e professor da Unicamp, Gilson Antunes, que conheceu Mayara há vários anos durante um dos eventos de violão que ele organizou em São Paulo, afirma que desde o início ela demonstrou extremo talento e perseverança, além de representar uma das grandes promessas da nova geração do violão brasileiro. “Em 2015 ela também fez maste rclass comigo em Campo Grande, tocando de forma correta, bem preparada e aberta a novas propostas técnico-interpretativas. Ela foi uma grande amiga, sempre alegre e cheia de vida, com imenso talento e seriedade.”
O professor da USP Edelton Gloeden, por sua vez, afirma ter conhecido Mayara no 1o Festival Leo Brouwer, em 2008. “Ela apareceu nas master classes e ficou muito atenta a tudo o que acontecia. Apareceu também em outras edições do festival. Depois fez uma master class muito bom desempenho com o próprio Brouwer. E sempre foi uma figura muito presente nos festivais de que participei, muito ativa, muito interessada”.
Amigo pessoal de Mayara, o violonista Celso Delneri frisa que Mayara não tinha apenas talento. “Aquela música era algo que ela adquiriu por ela mesma. Tocava de forma muito interessante. E era muito inquieta. Procurava fazer várias atividades, inclusive pedagógicas, tendo sido uma excelente professora de iniciação musical. E colhia os frutos de um trabalho muito intenso. Somos inclinados a imaginar o que uma menina jovem como Mayara poderia ter feito. Mas de fato ela fez muita coisa e será lembrada por isso. Traçou um caminho de determinação, consolidado. E toda vez que ela se encontrava comigo me revelava cada vez mais a escolha das mulheres compositoras que escreveram para violão. Isso iria se transformar num CD.
Professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Gilberto Stefan conheceu Mayara em 2007 quando começou a dar aulas na UFMS. “Era uma aluna diferenciada. Tímida mas com carisma gigante. Não dei aulas para Mayara mas apoiei sobremaneira sua carreira. Eu fazia recitais e a convidava para abri-los, dando espaço para o trabalho dela enquanto estudante, assim como fiz com vários violonistas talentoso”.
Poucos dias após o assassinato de Mayara, o professor da Unesp Luciano Morais publicou um texto no Facebook analisando um vídeo com duração de 14 minutos no qual a violonista toca uma série de peças, incluindo obras de Fernando Sor, Bach e Agustin Barrios. O filme foi postado no canal da própria Mayara no YouTube em maio de 2014, ou seja, antes até de ela iniciar o mestrado, evidenciando maturidade musical. “Digo sem reservas que este vídeo é uma aula de música. Ninguém de minha geração teve essa coragem. O Estudo op. 6 n. 6 de Sor é um paradigma intocável desde a gravação de referência de Sérgio Abreu. Todos os meus colegas, eu no topo, temos medo dessa peça e não ousamos colocar a mão nela. Mayara teve, e fez bem”.
“Neste vídeo, ela resolveu todos os problemas musicais e técnicos que a obra se propõe a abordar. O arco de frase está claríssimo, o controle da forma e da dinâmica soam naturais e o som equilibrado, com um estado de relaxamento que é característico de uma peça dominada. As outras peças seguem o mesmo padrão, com um som maravilhoso e uma preocupação sempre com a parte estrutural da obra, o tempo todo focada em como tocar as notas, que seguem uma compreensão formal inteligente. A gente tem que seguir adiante e honrar nossos modelos. Isso vale pra arte e vale pra vida. Hoje, é ela essa referência”.
O trabalho de Mayara serve agora como inspiração para outras mulheres que se dedicam ao violão e a galgar um espaço em um meio ainda tão restrito a músicos do sexo masculino. Como salientaram os professores Edelton Gloeden, Gilson Antunes, Gisela Nogueira e Luciano Morais em manifesto publicado após a morte da musicista, no dia 31 de julho de 2017, “Mayara se foi, mas sua vida e sua morte nos mostra de modo cristalino a necessidade de aprofundar o debate sobre o feminicídio e sobre a cultura machista em nosso meio”.
* Pauliane Amaral é formada em jornalismo e doutora em Letras. É irmã da violonista Mayara Amaral.