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Violonista italiano Oscar Gighlia (1938-2024): sobre despedidas e permanências

Postado em Artigos em 15/03/2024

Violonista italiano Oscar Gighlia (1938-2024): sobre despedidas e permanências - Foto: Oscar Gighlia

(Oscar Gighlia)

Por Luciano Morais*

Especial para o Acervo Violão Brasileiro

Quando o assunto é arte estamos sempre jogados no problema da oposição entre tradição e inovação. Mas alguns artistas parecem provar que este é um falso problema. Eles combinam a tradição e a inovação. Inovam a partir do que é reconhecido. Preservando a tradição criando novidades. Esses artistas seguem despertando interesse depois de mortos. Deixam um legado e reavivam a arte de nosso tempo. O violonista italiano Oscar Ghiglia (1938-2024), que faleceu no último dia três de março, era um desses artistas. Para ele, manter a tradição e cuidar da inovação frente a um mundo com problemas sempre novos, eram partes de um mesmo processo. Exatamente por isso, ele foi um desses grandes artistas que permanecerão sempre reavivando nosso deslumbramento.

O maestro romeno Sergiu Celibidache, perguntado se a tradição é tudo o que podemos aprender dos mais velhos, disse laconicamente que “não, isso não é tradição”. E deixou a pergunta em aberto, voltando-se para uma questão mais urgente no momento que era, por acaso, uma questão política. Já para o filósofo Hans Georg-Gadamer, tradição pode ser entendida como algo “que nos recompõe a partir do que nos decompõe”. Ora, o que nos decompõe é o tempo. O tempo arruína as resistências, transformando a glamurização da persistência em mera derrota adiada, que se estabelece no longo prazo.

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Mas o que preservamos de nosso passado, desde que seja algo pelo qual possamos nos responsabilizar, recompõe nosso entusiasmo, promove continuidades e recria novas alegrias. Oscar Ghiglia entendeu isto. Ele passou sua carreira recompondo a sólida tradição segoviana (que é, na verdade, de Tárrega) em uma forma moderna, respondendo a problemas de sua época, que não eram os que herdou das mãos de seus mestres. Essa é uma postura, entre a herança do passado e os desafios do presente, que configura o verdadeiro sentido para a palavra “tradição”, tal como sugerimos como resposta, digamos, gadameriana, à negativa de Celibidache.

Gighlia foi uma figura celebrada, sem dúvida. Ele é muito admirado por violonistas e músicos fora da esfera do violão erudito – a primeira vez que eu ouvi falar dele foi por meio de uma grande flautista, a amiga Andrea Serafim. Mas é também criticado por violonistas que vivem denunciando erros de execução para parecerem mais acurados que todos. Como se a música fosse algo que pudesse ser medido como cálculo e precisão. Ele viveu seu trabalho em absoluta indiferença com relação aos critérios tecnicistas de sua época.

Em seus anos de maturidade dava concertos como rituais místicos, passando longos momentos em silêncio antes de começar a tocar as peças, preparando a atmosfera da escuta para si e para o público. Escolhia andamentos mais lentos que a média, dedicava-se a diferenciar cada nota, cada acorde, mudando a dinâmica em micro decibéis e abrindo ou fechando o timbre conforme a harmonia se modificava. Procurava aliar o detalhe rico à estrutura clara.

Violonista italiano Oscar Gighlia (1938-2024): sobre despedidas e permanências - Foto: Oscar Gighlia

(Oscar Gighlia)

É o mais próximo, dos violonistas nascidos nos anos 1930-1940, da abordagem celibidachiniana. Foi também um dos pouquíssimos violonistas a ganharem o respeito e a aprovação de Andrés Segovia, algo que Julian Bream, por exemplo, nunca obteve. Se isso diz mais sobre Segovia do que sobre Bream ou Ghiglia, explica também como nosso homenageado foi corajoso em se distanciar da abordagem interpretativa segoviana, mesmo tendo começado sua vida musical totalmente amparado nela. O resultado é um artista único, que combina expressividade e elegância, lucidez formal criatividade discursiva.

Ouça Zambra Granadina, de Isaac Albeniz na interpretação de Oscar Ghiglia e perceba como Segovia está ali, em cada nota, controlando os rubatos e os acentos de seu aluno italiano. Tudo aqui reporta à ideia que Segovia fazia do que significa projetar uma mensagem musical através do violão. Leiam o trabalho de Mourin, sobre Monina Távora e verão que Ghiglia concorda em tudo com a concepção musical da mestra dos irmãos Abreu – concepção esta que ela atribuía a seu aprendizado com Segovia. Mas, apesar da forte influência de seu modelo interpretativo, esta mesma gravação já o diferencia da interpretação da mesma obra de seu mestre espanhol.

Essa diferenciação não foi nem uma escolha pessoal, nem o resultado de uma época, foi a sua resposta individual aos problemas de seu tempo. Portanto, ambas as coisas. Indivíduo e sociedade, tradição coletiva e formulação individual.

Vivendo em meio a uma nova realidade profissional, mestre Ghiglia viu florescerem os primeiros concursos de violão, sombras do mundo tecnologicizado projetadas no meio artístico da segunda metade do século XX. Não existiam competições de violão na juventude de Segovia. Estabelecidos como uma nova forma de amparar músicos e torná-los conhecidos, essas competições passaram a reconhecer intérpretes por critérios de precisão técnica, fluidez rítmica, velocidade e homogeneidade de timbres que se sobrepunham às formulações imaginativas e pessoais.

Ghiglia sabia que a fantasia criativa do intérprete é impossível de ser avaliada ou comparada e que sua época veria a transformação do aprendizado musical em algo muito mais técnico do que intelectual, mais cálculo de interesse do que vivência cotidiana. Mas a tradição não é algo do tipo que se possa escolher o que se retira dos mestres, como quem escolhe produtos em uma prateleira. As gerações mais recentes aparentemente viram a relação com seus mestres desta maneira.

A perfeição técnica se tornou algo como uma combinação cartesiana de componentes interagindo de forma eficiente. E não como uma elaboração orgânica do relacionamento entre o intérprete e sua história. A tradição indica um caminho, mas o intérprete precisa se responsabilizar pessoalmente pelo que recebe dela. Ela não é absorvida por meio de um processo técnico e controlado de aprendizado. É uma vivência de critérios em face do mundo contemporâneo a cada um.

Oscar Ghiglia sabia que seria julgado por esses novos critérios dos concursos, mas também sabia que a tradição não pode ser aprendida como quem consome produtos. Ghiglia elabora sua interpretação da Zambra Granadina como algo que segue sempre “para frente”, com uma urgência rítmica em que Segovia não estava interessado. Sua gravação dura um minuto a menos que a de Segovia. A limpeza técnica e clareza da mensagem é absolutamente moderna, com olhos nas exigências críticas de seu tempo. Mas há algo mais.

Repare na respiração das frases, na regularidade do crescendo aos dois minutos, na diferença de timbre buscada em cada elemento de contraste da composição. Há algo aqui que se reporta à tradição segoviana. E devo confessar que, na primeira vez que ouvi esse registro - no programa Violão com Fábio Zanon - pegando a peça do meio sem ouvir o anúncio do intérprete, eu tive certeza de que se tratava de uma gravação do próprio Segovia.

Mas a “modernidade” da abordagem me causou estranhamento. Poucos violonistas, com Manuel Barrueco à frente, propunham aquela objetividade de interpretação. Mas o violonista cubano que modelou toda uma era, o fazia de modo muito mais preciso e impessoal (como ele mesmo diz, “meu objetivo é mostrar a música e não o que estou fazendo através da música”). A voz grave de Fabio Zanon anunciando no rádio Oscar Ghiglia, ao final da transmissão, abriu minha cabeça para pensar a questão de como um intérprete pode carregar consigo suas referências e, mesmo reverente a elas, permanecer como uma individualidade.

Violonista italiano Oscar Gighlia (1938-2024): sobre despedidas e permanências - Foto: Oscar Gighlia
(Oscar Gighlia)

Em 2017, eu o procurei por e-mail para uma pesquisa. Foi Sérgio Abreu quem me sugeriu que eu perguntasse a ele sobre diferenças entre manuscritos e gravações de Segovia na Sonata 3 de Manuel Ponce. Ghiglia foi extremamente generoso e me escreveu várias linhas de análise musical como resposta. Recebi uma consideração detalhada da obra, justificando e esclarecendo a opção tomada na gravação, que ele atribuía a uma simbiose de pensamento entre Segovia e Ponce.

Maestro Oscar ignorou totalmente o problema de prazos das editoras para exploração comercial das obras de Ponce, um imbróglio mundano que provavelmente gerou a divergência entre os registros de obra de Ponce dos violonistas segovianos. Essa ausência de preocupação documental cedia espaço para um excedente de imaginação e especulação sobre a obra em si, esquecendo-se da parte física da partitura para relembrar o fenômeno sonoro enquanto tal, na sua plenitude.

Mostrava, comentando compassos e tonalidades, como Ponce se apropriou da tradição beethoveniana da forma sonata para criar algo que, à sua maneira, se reporta a ela sem repeti-la – apoia-se na tradição aprendida sem precisar copiá-la. Na visão de Ghiglia, Ponce abordou a forma sonata “em seu espírito, não em sua fórmula acadêmica”, e finalizava dizendo o quanto Mario Castelnuovo-Tedesco admirava esta obra.

Ele dava, em sua sofisticada resposta a mim, um completo desconhecido, um complexo testemunho da possibilidade humana de atualizar, à sua maneira, verdades artísticas ditas por nossos mestres. E não só demonstrou como Ponce fez isso, como também indicou indiretamente como ele próprio adotou a mesma postura de reler criticamente a tradição interpretativa de que era portador.

O que pode definir melhor um intérprete do que essa postura?

Com a morte de Oscar Ghiglia perdemos mais um farol que nos mantinha ligados ao que pode ser apreendido do nosso passado. Voltar os ouvidos à suas gravações hoje é o que nos resta para aprender, finalmente, o que pode significar para nós, hoje, a palavra tradição: recuperar sentido, meta e valor no trabalho diário de recompor o tempo que nos decompõe. Deixo aos leitores do Acervo do Violão Brasileiro a despedida do grande violonista italiano em seu generoso e-mail a mim, estendendo este convite a todos nós, que vivemos pelo violão:

“Boa sorte em seu artigo e em seus planos de seguir adiante em sua vida musical, buscando pelas razões do fenômeno musical.

Com os melhores votos,

Oscar Ghiglia”*

(01/05/2017)

* No original: “Good luck with your paper and with your plans to follow up in your music life looking for the reasons of musical phenomena.

Best Wishes,

Oscar Ghiglia (1/05/2017)”.

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