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Tributo ao sui seneris violonista e compositor Sérgio Ramos

Postado em Cartas de amor em 01/02/2022

Por Carlos Walter

Quando escuto a versão cantada do Choro Chorado pra Paulinho Nogueira de Toquinho, Paulinho Nogueira e Vinícius de Moraes, mergulho no espaço-tempo dessa canção e nado num mar de reminiscências das inesquecíveis aulas de violão. E quando me deparo com o nome do Meira nas biografias de Baden Powell e Raphael Rabello, sou embalado por aquele genuíno sentimento de respeito e gratidão que todo educando nutre por seu mestre. Afinal, todos nós tivemos professores que, de modo especial, deixaram um rastro expressivo. No meu caso, entoo loas ao Sérgio Ramos ( do qual fui aluno, em Uberaba, Minas Gerais, entre 1992 e 1993.

Nasci numa família musical e, aos 12 anos, já sentia paixão imensa pelo violão. Estudar ao longo de um ano com o ex-guitarrista do Mugstones, lendário grupo da jovem guarda que abria shows de Ronnie Von e Roberto Carlos foi um divisor d’águas. As lições de Tárrega, a (re)harmonização de canções, a assimilação de inventivos arranjos e um emaranhado sem fim de dados sobre o instrumento maximizaram o meu interesse e aprendizado. Depois, em 1994, estudei solfejo com Olegário Bandeira, vulgo Chumbinho, que dispunha de um acervo especializado de partituras violonísticas. A partir de 1995 tornei-me autodidata. Nessa fase, estudava seis horas diárias de violão, domingo a domingo.

Embora não mais fosse aluno do Sérgio Ramos, sempre ia com o meu pai, o saxofonista Álvaro Walter, assistir a suas apresentações nos teatros locais, como o show de lançamento do álbum Criação no auditório da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, gravado no Line Out, estúdio do Gê, que reuniu a nata musical uberabense e contou com a participação especial de Dércio Marques na faixa Esperança Passarim, e que, junto ao Evocar-se, de Carlos Perez, foi, na era pós-LP e pré-internet, um dos primeiros CDs independentes lançados no Triângulo Mineiro. Esse feito inspirou outros artistas a gravarem os seus CDs, aquecendo a economia criativa da região.

Já nessa época percebi que não bastava só compor, arranjar e tocar violão. Era necessário empreender, buscar patrocínio, produzir, contratar, pensar num projeto gráfico, fazer parte de uma das associações vinculadas ao ECAD, gerar ISRCs dos fonogramas, prensar, divulgar, vender o peixe. E Sérgio fazia tudo isso exemplarmente. A essa altura nos tornamos grandes amigos. Quando ingressei na faculdade de Direito em 1997, ganhei dos meus pais um violão melhor. E lá fui eu feliz da vida buscar meu Takamine E-30, igual ao do Serginho, na Casa Manon de São Paulo.

Ele morava ao lado da Universidade de Uberaba. Então, vira e mexe o visitava após as aulas jurídicas. E, pra variar, ele sempre tinha uma carta na manga, uma novidade, um novo arranjo, uma nova composição, uma revista Guitar Player ou Backstage, LPs cativos, CDs e livros recém adquiridos. E generosamente me emprestava. Eu gravava tudo em fitas cassete.

Foi lá que ouvi pela primeira vez Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Gilvan de Oliveira, Geraldo Vianna, Celso Moreira, Ulisses Rocha, Paulo Bellinati, Cristina Azuma, Marco Pereira, Earl Klugh, Egberto Gismonti, Trio D’Alma, Pau Brasil, André Geraissati, Hermeto Pascoal, Nonato Luiz, Hélio Delmiro, Túlio Mourão, Guinga, Take Six, George Benson, Paulo Ramos, Toninho Ramos e tantos outros. Os dois últimos eram irmãos do Sérgio e tinham projeção internacional, viviam há décadas no Canadá e na França, respectivamente.

Assim fui lapidando meu ouvido, expandindo repertório e a minha percepção musical em meio às tocatas com conterrâneos e familiares, travando contato com a obra de outros ídolos que depois tive a honra de tocar ou conhecer. Cheguei, por exemplo, a tocar com Toninho Ramos em Uberaba e em Paris, nos bastidores do Teatro Lúcio Costa da Maison du Brésil, situada na Cité Universitaire, quando participei do VI Festival du Choro de Paris junto ao violonista de 7 cordas Sílvio Carlos por intermédio do programa de intercâmbio e difusão cultural do MinC.

Nessa etapa, produzi com Moisés Caciel, sobrinho do Sérgio, o recital Círculo das Cordas, inspirado no álbum homônimo do Marco Pereira, no auditório da Fundação Municipal de Cultura de Uberaba. O nosso mestre incentivou-nos bastante e marcou presença, recém-chegado de um show em Montes Claros com Marcelo Taynara e a participação especial do Beto Guedes.

No auge da Nova Era, em 1998, Sérgio gravou o CD Fiat Lux e convidou-me a participar da faixa Belo Horizonte, tocando sequências combinatórias das notas lá (A), dó (C), sol (G), respectivamente alusivas à Adenina (A), Citosina (C) e Guanina (G), bases nitrogenadas do DNA, junto ao vocal afro-brasileiro de Marcelo Taynara. Foi a minha segunda gravação em estúdio. A primeira foi realizada no ano anterior na faixa O segundo dia da criação, do álbum Os Dias da Criação, de Carlos Perez. De lá pra cá, desembestei a gravar.

Em seguida Sérgio Ramos fez inúmeras gravações, colaborando em projetos coletivos, marcando presença em coletâneas da Revista Planeta, de Mirna Grzichi, produzindo espetáculos e lançando outros CDs autorais, como Semear (1999), junto à esposa Regina Oliveira, com repertório atinente à Musicoludoterapia, proposta pedagógica e terapêutico-preventiva experienciada por ambos desde 1994, de norte a sul, especialmente em unidades do “Lar Fabiano de Cristo”, calcada “na visão do ser integral e em importantes abordagens como o Construtivismo piagetiano, a Pedagogia Waldorf, a Antroposofia de Rudolf Steiner, o Yoga Integral, a Psicologia Analítica de Jung. Tendo em vista que a música é a arte que mais mobiliza, e que o lúdico é um poderoso canal para o contato conosco e com os outros, a Musicoludoterapia nasce a partir da conexão desses dois elementos e propõe a ampliação do olhar sobre os maravilhosos recursos que a música e o lúdico podem oferecer, a partir de um trabalho consciente de estímulo à espontaneidade, à criatividade, à autoconfiança e à alegria de viver”, segundo nota disponível no Facebook

Em seguida, Sergio lançou Urupê (2000), álbum eletroacústico com sete faixas instrumentais do gênero jazzístico-brasileiro; Sete Colinas (2001), álbum bem mineiro, em parceria com Marcelo Taynara, contendo quinze músicas instrumentais e cantadas; Universal (2004), álbum com dez músicas instrumentais, improvisos e estilos variados; Cores e Tons (2021), o derradeiro álbum com temas dele e do pianista canadense Denis Paré; E o CD Sorte (2002) com dez temas, sendo um em parceria comigo (Princesa) e os outros nove dele com arranjos meus para o segundo violão. Esse trabalho foi um baita laboratório de criação e experimentação.

Ouça playlist com trechos das faixas do CD Sorte, clicando na capa.

Trouxe-nos alegrias como o texto abaixo do Ian Guest, que integra o encarte: “A sonoridade de dois violões, na mão dessa dupla de músicos repletos de domínio instrumental e criatividade, oferece coloridos e formas caleidoscópicas de riqueza surpreendente – beirando o som de uma orquestra de violões e lembrando, por vezes e por exemplo, de sons de harpas e alaúdes. As composições, em sua singeleza e simplicidade, são excelente matéria-prima para harmonias, contracantos e texturas incrementadas de ideia e humor. Devido aos seus matizes furta-cor cada nova audição corresponde a novas revelações, tão desejáveis em gravação”.

Certa vez escrevi algo sobre a música Princesa, a única que compusemos: “A composição Princesa abriga melodias incidentais de temas bastante conhecidos: Desafinado (Jobim/Mendonça), Jesus: Alegria dos Homens (Bach) e Hino Nacional Brasileiro (F. Manuel da Silva/Duque Estrada). Essa intertextualidade foi um recurso semiótico de desmitificação da mulher amada ou desconstrução da monarca intangível. A dissonância bossa-novista, o barroco bachiano e o hino republicano compõem os ingredientes dessa façanha”.

Onze anos após o lançamento, quatro dos arranjos que integram esse álbum foram analisados por André Luiz Fernandes, um dos seus talentosos alunos, em monografia de conclusão do bacharelado em Música da Universidade Federal de Uberlândia, na qual pude colaborar com entrevista, sugestões e transcrições dos arranjos de 2º violão. A pesquisa está disponível na Biblioteca do Acervo e se chama Sérgio Ramos, um violonista-compositor brasileiro: processo de desenvolvimento composicional.

CONFIRA ESTE CD NA LOJA VIOLÃO BRASILEIRO

Desde 2004 moro em Belo Horizonte, mas sempre mantive contato com Sergio Ramos e o visitava quando ia a Uberaba. Conversávamos sobre mercado de trabalho, espiritualismo, literatura, música. E tocávamos horas a fio na sua casa, em teatros, botecos e casas espíritas. Casei-me, tive filhos e adotei uma rotina intensa de trabalho. O tempo foi ficando escasso. Minhas idas à terra natal e o tempo de estadia foram reduzindo. Aí veio a pandemia... passei então a assistir com regularidade aos vídeos que ele publicava no Facebook.  Ele acompanhava minhas postagens musicais atentamente, comentando com palavras de enlevo. Era assim com todos. Solidário, carismático, incentivador.

Em 2010 publiquei o livro O violão e as linguagens violonísticas do choro, que em breve estará à venda na loja Violão Brasileiro. E não perdi a oportunidade de incluir o Sérgio na página de agradecimentos e dedicatórias. Em 2015, quando lancei o disco Calendário do (A)Feto: suíte para violão solo com 9 movimentos alusivos aos meses de gestação, sob a direção musical de Elodie Bouny, escrevi no histórico do 2º mês essas linhas: “Salsa em Sol menor com pitadas de samba e o calor solar da latinidade: vida em movimento, pausa e síncope. A onomatopeia Uh! é típica do gênero. Sonoriza o clímax intermitente da náusea materna, metaforiza um canal extralinguístico de comunicação onomatopaica com o (a)feto e aflora lembranças de Uberaba, minha terra natal. O hibridismo entre salsa e samba é uma proeza rítmica internalizada a partir do arranjo de 2º violão que desenvolvi para o tema Sorte, uma congada do professor Sérgio Ramos que se transforma num samba vivaz!”

Em 2020 fui entrevistado pelo jornalista Antônio Carlos da Fonseca Barbosa da Revista Ritmo e Melodia, um longevo repositório de diálogos com personalidades da música brasileira, e indiquei o Sérgio Ramos. Em fevereiro de 2021, brindou-nos com uma excelente entrevista biográfica.

Em abril de 2021, após a live de lançamento do violão Lírio  na 3ª edição do Sons da Cidade – Mostra Internacional de Violão de Belo Horizonte, trocamos as últimas mensagens de voz. Ele ficou entusiasmado com esse novo instrumento. Prometi levá-lo a Uberaba para que pudesse testar.

No dia 15/05 participei do programa “O Charme do Violão Mineiro” do violonista Celso Faria transmitido em 08/06/21. Num dado momento, prestei uma homenagem ao Sérgio, compartilhando um trecho de nossa incursão no programa Negócio Fechado do jornalista Francisco Marcos Reis pela TV Universitária há 19 anos, tocando Tristesse de Telo Borges e Milton Nascimento com os nossos violões Takamine. Mal sabia que o meu eterno professor estava hospitalizado.

Quatro dias depois ele morreu por Covid-19, cumprindo a sua missão com dignidade, solicitude, determinação, competência, afeto e responsabilidade, alegrando vidas com o seu transformador dom musical, herdado do seu pai adotivo Domingos Ramos e consolidado junto à filha cantora Mariana Sampaio, aos talentosos irmãos (além dos que já citei, Cidinho, Adolfo, Augusto e Luiz Ramos) e sobrinhos Moisés Caciel, Cecília, Tamia Ramos, entre outros.

Destarte, o seu legado musical vive em nós, nas mãos dos seus incontáveis alunos, espalhados mundo afora. E a força-motriz do seu violonismo contagiante continuará a nos inspirar e guiar rumo ao devir. É o que permeia a atmosfera da canção Saudade Danada que compus junto ao cavaquinista Fausto Reis em sua homenagem.

Pra desfechar o preito, cito Fernando Brant e Milton Nascimento e convido todos a assistirem ao vídeo de nossa passagem pelo programa “Oficina de Artes na TV” apresentado pelo violeiro Alexandre Saad, transmitido há 20 pela TV Universitária de Uberaba, onde tocamos algumas de suas composições – Quântica, Pirilampo (dedicada ao Chico Xavier) e Vívida.

“Até sempre pra não falar adeus”.

Ajude a preservar a memória da nossa cultura e a riqueza da música brasileira. Faça aqui sua doação.