Tom Jobim: polimento extremo na escolha de cada nota e acorde - Entrevista com Sidney Molina
Tom Jobim por William Claxtom
Por ALESSANDRO SOARES
Neste final de janeiro, em que o Acervo Digital do Violão Brasileiro continua produzindo conteúdos especiais sobre os 90 anos de nascimento de Antônio Carlos Jobim, conversamos com o violonista e líder do Quaternaglia Guitar Quartet (QGQ), Sidney Molina, abordando as principais características da obra do compositor de Desafinado. Molina, que também é professor de estética e colunista da Folha de S Paulo, nos fornece valiosas dicas de como pensar em arranjo para violão. Ele relembra a experiência pioneira do Quatrernaglia em adaptar uma obra sinfônica do Jobim – Crônica da Casa Assassinada (que o maestro gravou no icônico LP Matita Perê), composta originalmente para o filme de Paulo César Seraceni, de 1971 e estrelado por Norma Benguell. O filme é baseado no livro de Lúcio Cardoso, de 1959. A partir daí, nosso entrevistado conta bastidores da gravação dessa suíte no CD Presença, lançado em 2004, quando Fernando Lima (atualmente no Duo Siqueira Lima) e João Luiz (do Brasil Guitar Duo integravam o quarteto com Fabio Ramazzina e o próprio Molina. Esse recital teve registro em DVD. A economia na música de Tom Jobim é, segundo Sidney Molina, fruto de muito trabalho. “Há um polimento extremo na escolha de cada nota e acorde. Se tentamos rearmonizar uma peça de Jobim, ou, também o que é bastante comum, se esquecemos a harmonia original e vamos experimentando o que o ouvido normalmente pediria, invariavelmente chegamos a soluções menos interessantes do que a original...quando consultamos o que ele de fato fez, é mais improvável, e sempre melhor!”. Molina frisa também que, para além da economia, é também como se houvesse um pensamento sinfônico por trás, um potencial sinfônico nem sempre explicitado por ele. “Aí a referência é, de fato, Villa-Lobos. Trem para Cordisburgo é o Trenzinho Caipira de Tom Jobim”, compara. Confira a entrevista, realizada por email com o jornalista e pesquisador Alessandro Soares.
Sidney Molina
Acervo Violão Brasileiro Brasileiro - Como surgiu a ideia de adaptar a suíte completa da Crônica da Casa Assassinada para quatro violões? É um marco, por ser a primeira vez que uma peça orquestral inteira do Tom Jobim teve uma versão em violões. Até então só havia arranjos de “Chora Coração” para violão solo, salvo engano. Mas o fôlego de fazer todos os movimentos da suíte foi iniciativa de vocês, né?
Sidney Molina - Lembro-me bem da situação: em janeiro de 2003 estávamos no Festival de Round Top, no meio do Texas, no Estados Unidos, que é um lugar que leva muito a sério o que significa fazer música - tanto pela qualidade acústica do teatro e da proposta artística, como por conta da tranquilidade e paz que o ambiente oferece aos participantes - e, como é comum no Quaternaglia, estávamos conversando sobre ideias de um novo repertório. Já tínhamos algumas peças para o CD novo, que seria o primeiro com a formação do grupo com João Luiz e Fernando Lima (mais o Fabio Ramazzina e eu). Estava claro que, depois do disco Forrobodó, produzido por Egberto Gismonti para a gravadora ECM alemã, tínhamos que fazer mais um trabalho totalmente voltado à música brasileira, até porque os compositores estavam escrevendo - e muito bem! - para nós. Tínhamos certeza de que o Quarteto n.1 de Radamés Gnattali entraria (foi, de fato, a primeira gravação mundial), e também a Sweet Mineira sobre temas de Milton Nascimento (de Sergio Molina), que já estávamos tocando. Pensamos, então, que um autor deveria dialogar com Radamés e Milton, deixando o espaço aberto e preparado para a apresentação dos compositores mais jovens, Rodrigo Vitta, Paulo Tiné, Douglas Lora e o próprio Sergio Molina. Jobim se encaixava perfeitamente! Então, a ideia inicial não foi "adicionar" Tom à nossa discografia, mas colocá-lo em perspectiva dentro do projeto que acabaria por se tornar o CD Presença (gravado e lançado no ano seguinte, 2004). Agora... talvez nós não tivéssemos levado adiante a ideia se João Luiz não sugerisse fazer a Crônica da Casa Assassinada. Realmente contou muito o fato de ser uma obra tão incrível como menos conhecida de Jobim; na verdade, uma trilha sonora, realizada por ele com os cuidados próprios de um trabalho instrumental (lembrando: dos quatro movimentos, apenas Chora Coração se tornou uma canção com letra). Outras referências também pesaram, como o itinerário que conecta o romance de Lúcio Cardoso ao filme de Paulo César Saraceni, que recebeu trilha de Tom, a qual por sua vez ganhou o prêmio de melhor trilha no “I Festival de Cinema de Gramado”, ainda a referência dupla a Guimarães Rosa e Villa-Lobos no Trem para Cordisburgo, e, acima de tudo, a qualidade do arranjo de João Luiz, um dos primeiros da carreira desse músico extraordinário que, a cada dia, se firma mais no cenário composicional (11 anos após o CD Presença, o Quaternaglia registrou, no recente CD Xangô, as três primeiras obras autorais de João para quatro violões (uma delas já saiu editada pela editora canadense Doberman).
Que se saiba, Tom Jobim nunca escreveu para violão, embora tocasse o instrumento para acompanhar. Mas é grande a quantidade de arranjos de músicas dele feitas por violonistas como Daniel Murray, Marco Pereira, Raphael Rabello, Conrado Paulino, o Maogani e o Quaternaglia. Imagino que as peças do Tom não sejam naturalmente violonísticas. Pensar em Jobim para quatro violões é mais fácil ou não?
Sem dúvida há belas versões de Jobim feitas por violonistas, mas aqui você toca em um ponto que, para mim, é fundamental, a saber: a dificuldade em transpor uma canção para a música instrumental. As boas canções não são “temas com letra”, mas um todo amarrado, uma simbiose de “palavras-cantadas”. Por isso nós buscamos evitar que a versão instrumental de uma canção seja “a memória de um original” no qual, entretanto, “falta a letra”. Um trabalho instrumental sobre um tema de canção tem que se sustentar instrumentalmente, e isso de fato ocorre nos nomes citados por você. Vejo dois caminhos principais para se chegar a um bom resultado: por um lado, a improvisação “de verdade”, o caminho que o jazz propõe, e, por outro, justamente a escrita artesanal da música clássica, suas técnicas de contraponto, harmonia, ritmo, desenvolvimento motívico-temático, forma, timbre. Dependendo do caso, o resultado pode ser mais eficiente no violão solo ou na música de câmara, mas o importante é entender que algo precisa compensar, por assim dizer, aquilo que se perde numa canção quando se retira dela a letra.
Apesar do Tom ser considerado um compositor econômico nas notas, você o vê mais orquestral? Ou não necessariamente? Ou uma coisa não tem a ver a com a outra?
É uma excelente questão, porque há uma convivência dos dois aspectos. A economia em Tom Jobim é fruto de muito trabalho, há um polimento extremo na escolha de cada nota e acorde. Se tentamos rearmonizar uma peça de Jobim, ou, também o que é bastante comum, se esquecemos a harmonia original e vamos experimentando o que o ouvido normalmente pediria, invariavelmente chegamos a soluções menos interessantes do que a original...quando consultamos o que ele de fato fez, é mais improvável, e sempre melhor! Mas, por outro lado, para além da economia, é também como se houvesse um pensamento sinfônico por trás, um potencial sinfônico nem sempre explicitado por ele, e aí a referência é, de fato, Villa-Lobos. Trem para Cordisburgo é o Trenzinho do Caipira de Tom Jobim.
Pelo belo trabalho que vocês fazem com música camerística e de concerto, a impressão é a de, caso voltem a fazer novos arranjos de obras de Jobim, a tendência será revisitar peças mais sinfônicas, a exemplo dos discos Urubu e Matita Perê, do que os standards, né? Ou não?
Bem, isso dependerá do caso concreto...como vimos no caso da Crônica, tudo vai da função que terá no repertório e da eficácia do próprio arranjo. Foi muito bom termos tido a chance de registrar a Casa Assassinada também em versão ao vivo no DVD (lançado em 2006). Uma coisa que talvez nem todo mundo saiba, é que – uma única vez, até hoje – o Quaternaglia contou com a participação de uma cantora popular convidada em um show especial: foi Ná Ozzetti, no Auditório Ibirapuera em fevereiro de 2008, e nesse dia fizemos o Chora Coração com quatro violões pontuando o poema simples de Vinicius de Moraes na voz de uma das melhoras cantoras da história recente da música popular brasileira. Foi incrível!
Em músicas como Arquitetura de Morar (do disco Urubu), Tom faz uma colagem de algumas das suas melodias (Retrato em Branco e Preto, Águas de Março, etc), especialmente aqueles trechos de escalas melódicas lentas, composta de poucas notas, em intervalos bem próximos, que se repetem, ou vão e voltam. Desculpa não saber expressar bem essa pergunta. Mas enfim... o que pra você é de mais característico na assinatura musical de Tom Jobim?
É perfeitamente compreensível o que você diz, com os exemplos e tudo! Concordo totalmente que a assinatura musical de Tom Jobim está nesses intervalos próximos, “que se repetem ou vão e voltam”
Jobim inaugurou nova linha de composição nos anos 1970. Já era consagradíssimo e enveredou por temas do Nordeste, a meu ver, como Stone Flower e O Boto (que pra mim são formas bem particulares de baiões). Por sinal, parte da letra de O Boto é do Jararaca. Jobim também passou a explorar mais ainda o lado sinfônico, como os já citados LPs da década de 1970. Já nos anos 1980 ele faz a trilha sonora da série da TV Globo, O Tempo e o Vento, cujo trecho de uma das peças gerou Passarim. Curioso é que o próprio Jobim disse ser filho musical de Villa-Lobos. A indagação é: onde a influência do Villa sobre o Tom está mais presente? Nas obras orquestrais? Ou no todo? Sabemos o quanto Tom bebeu de Debussy, Gershwin e Chopin. O Villa está no caldeirão. Mas em que obras isso fica mais evidente?
Eu adicionaria aos exemplos uma obra magistral, também dos anos 1980, que é a trilha deo filme Gabriela. Composicionalmente, Tom nunca parou de evoluir, e a conexão com Villa-Lobos fica mais evidente à medida em que ele atinge a maturidade. Melodicamente Tom esconde a influência de Villa-Lobos – esconde de si mesmo, por assim dizer; certos encadeamentos harmônicos podem lembrar de fato o Villa, mas a “influência complexa” se revela no aspecto sonoro, na instrumentação, no uso do violoncelo e da flauta, nos coros femininos em uníssono, nos quais uma espécie de sombra de Villa-Lobos paira por trás de sambas e bossas. Como você sabe, os meus trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado trataram dos vetores complexos das influências poéticas – como no caso da “desleitura” ou mesmo “angústia da influência” entre Julian Bream e Segovia. Seria o caso de estudar se o caso Jobim-Villa passa por algo similar.