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O violonista Roland Dyens: uma alma de muitos lugares

Postado em Cartas de amor em 17/10/2022

O violonista Roland Dyens: uma alma de muitos lugares - Foto: Roland Dyens

(Roland Dyens)

Por Filipe Gonçalves (*)

Especial para o Acervo Violão Brasileiro

A primeira vez que me deparei com a música de Roland Dyens (1955-2016) foi no período da graduação em violão, em Belo Horizonte (MG). Lembro exatamente do momento em que meu professor Alvimar Liberato me convidou para escutarmos juntos uma peça que seria boa para meu desenvolvimento como violonista. Então fomos ao seu carro ouvir a obra Libra Sonatine, interpretada pelo grande violonista argentino Eduardo Issac.

Alvimar colocou o terceiro movimento – Fuoco – para tocar.  O ano era 2006 e a gravação estava em fita cassete! Fiquei impressionado ao ouvir todas aquelas notas, dissonâncias, efeitos de técnica estendida, além da rítmica do baião, elemento que determina o caráter do terceiro movimento. Após esta primeira escuta, procurei ouvir por conta própria os outros movimentos da obra e pude notar vários tipos de material musical e procedimentos composicionais que me contagiaram instantaneamente. Pouco mais tarde, a Libra Sonatine se tornou parte do meu repertório por vários anos.

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Violonista, compositor e arranjador, Roland Dyens se apresentou em vários países da Europa, África, Ásia e América, tocando em importantes salas de concerto. Sua linguagem musical compreendia aspectos da música contemporânea, da escrita tradicional para violão e do jazz, característica que o possibilitou manipular diversos gêneros musicais, oriundos de vários lugares do mundo e que serviram como fonte de matéria prima da sua música. Dá para notar, por exemplo, a presença de recursos sofisticados, comuns na música contemporânea, agrupados com a linguagem do choro e da bossa nova na obra Brésils, escrita para quarteto de violões. Ou, na peça Tango em  Skai para violão solo, em que se apropria do tango latino.  

Como arranjador, Dyens explorava as possibilidades idiomáticas do violão de uma maneira única, mostrando harmonizações sofisticadas. A meu ver, a forma como ele destacava as dissonâncias de segunda menor utilizando cordas soltas é uma de suas marcas registradas. Outra grande característica dele era improvisar no início dos concertos. Para mim, parecia uma espécie de acoplamento energético, ou talvez uma maneira de evocar uma atmosfera sonora que pudesse conectar o público com ele durante a apresentação.

O violonista Roland Dyens: uma alma de muitos lugares - Foto: Roland Dyens e Filipe Gonçalves (Foto cedida de arquivo particular)

(Roland Dyens e Filipe Gonçalves - Foto cedida de arquivo particular)

Poderíamos destacar várias outras qualidades musicais que constituem a obra de Roland Dyens. No entanto, me parece interessante falar da simpatia e da generosidade que ele demonstrava nos lugares por onde passava. Basta acessar na web alguns vídeos de suas performances conversando com o público ou uma de suas entrevistas ao redor do mundo para perceber um pouco desta energia. Pude sentir isso quando o conheci no IV Festival Internacional de Guitarra Vivace Peru, em Lima em setembro de 2013.

Esse festival tinha a tradição de homenagear um grande violonista a cada edição e Roland Dyens era a estrela da vez. Me lembro do primeiro dia, quando professores, artistas e alunos se encontraram para um café da manhã, oferecido pelo evento. Vários violonistas e espectadores lhe pediam uma foto, formando até fila. Em meio a toda aquela movimentação, Dyens veio até mim e perguntou:

_ Você é brasileiro? Filipe, certo?  

_ Sou, sim.

_ De qual cidade, Filipe?

_ Venho de Belo Horizonte, Minas Gerais, conhece?

_ Claro, conheço sim! Inclusive já toquei em Belo Horizonte. Conheci vários violonistas legais de lá, o Fernando, o Alieksey... Eu amo o Brasil, se eu pudesse morava lá!

E, assim, iniciamos uma conversa que se estendeu por mais três dias e me marcou profundamente. Falamos de violão, carreira e sobre o quanto ele admirava o Brasil, os brasileiros, a cultura e a nossa música. O curioso é que teve momentos em que Roland Dyens escapulia dos eventos restritos aos artistas do Festival para se juntar aos estudantes e conversar, interagir. Dessa maneira, falamos sobre diversos assuntos como a questão socioeconômica da França, os possíveis caminhos profissionais para os novos violonistas, idiomas, gastronomia e música brasileira, claro!

Naquele ano, o festival havia recebido violonistas de vários países da América Latina, como Uruguai, Argentina, Costa Rica, Equador, Bolívia, Colômbia e Peru. A maioria havia realizado a inscrição para a masterclass que seria ministrada por Roland Dyens e praticamente todos tocavam uma obra ou um arranjo escrito por ele. Dyens conduziu a master de modo diferente para cada violonista, abordando assuntos técnicos, expressivos, artísticos e musicológicos. Como havia muitos violonistas para tocar, a aula se estendeu por muitas horas. Mas ele a conduziu do início ao fim com a mesma generosidade, empatia e paciência que tinha nos mostrado desde o início do festival.

Não me esqueço de um ensinamento que “pesquei” durante a graduação. Um colega perguntou à professora, em meio a uma discussão sobre o ofício de ser musicista e seus valores perante a sociedade: “o que é ser um grande músico para você, professora?” Ela respondeu: ”Para mim é, antes de tudo, ser um grande ser humano, atento à sua sensibilidade e que conheça a si próprio ao máximo possível”. Esse é um tipo de afirmação que guardamos em nosso subconsciente e que não compreendemos imediatamente de forma racional devido à sua natureza filosófica. Ali, fiquei simplesmente emocionado ao ouvir aquelas palavras.

Durante o Festival Vivace Peru, Roland Dyens demonstrou uma postura que me lembrou esta reflexão. Um comportamento educado que a maioria em sua posição teria, mas carregado de respeito e generosidade extraordinários em suas palavras. Infelizmente, Roland Dyens se despediu desse mundo com pouca idade, aos 61 anos.  Segundo o site de notícias francês FRANCE INFO, Dyens teve câncer. Sua morte foi anunciada em 29 outubro de 2016, dez dias após seu aniversário.

Deixo aqui minha pequena homenagem a esse grande músico, que se mostrou ao mundo como um verdadeiro artista e que buscou conversar com diversas culturas através do violão. Uma delas o seduziu especialmente, essa a que pertencemos: a música brasileira!  

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* Filipe Gonçalves é violonista, compositor e mestre em violão pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dedica-se à música clássica e já se apresentou em importantes salas de concerto e em festivais no Brasil e no exterior. Em 2022, publicou o livro Appassionata para violão de Ronaldo Miranda: Reflexões acerca da prática de revisão. Premiado em vários concursos no Brasil, atualmente Filipe leciona na escola de música #Bravo, em BH, e tem preparado alunos para cursos em universidades no Brasil, Estados Unidos e Dinamarca.

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