O reencontro com o violonista Chico Mário, irmão de Betinho e Henfil, pelo olhar do cineasta Silvio Tendler
Por Gabriel de Sá
Nos anos 1980, o sociólogo Betinho presenteou o amigo e cineasta Silvio Tendler com um disco de seu irmão, o violonista mineiro Chico Mário. “Você precisa conhecer a obra dele”, comentou o ativista de direitos humanos. Mas Tendler não deu muita importância. “Confesso que não levei tão a sério e acabei não ouvindo o álbum”, relembra o cineasta em entrevista ao Acervo Violão Brasileiro.
Seu mais recente longa-metragem é dedicado a ao singular personagem e se chama Chico Mário – A Melodia da Liberdade, que em breve entrará na programação do canal Cine Brasil TV. O filma esteve na mostra competitiva de documentários do 25º INFF, o Inffinito Brazilian Film Festival, com transmissão online na quinta-feira (09/09). E em junho esteve entre as atrações do Festival Internacional do Documentário Musical IN-EDIT e do Santos Film Fest.
Nascido em Belo Horizonte, Francisco Mário de Figueiredo Souza acabou morrendo em março de 1988, com apenas 39 anos. Além de Betinho, o violonista era irmão também do incensado cartunista Henfil. Os três irmãos eram hemofílicos – doença herdada da mãe – e foram infectados pelo HIV em transfusões de sangue. Henfil morreu em janeiro de 1988 e Betinho partiu em agosto de 1997.
Muitos anos depois da despedida de Chico Mário, Silvio Tendler foi apresentado ao filho dele, o pianista Marcos Souza, por um amigo em comum, o compositor Felipe Radicetti. A partir do encontro, surgiu o convite para que Tendler dirigisse um documentário sobre o violonista. “Fui ouvir tardiamente a obra que o Betinho tinha me dado e o cara é um músico espetacular. Percebi ali a besteira que eu tinha feito”, conta Tendler. “Eu tinha essa dívida e resolvi fazer o filme”.
(Marcos Souza)
Assim nasceu o documentário, o tardio encontro do diretor Silvio Tendler com a obra do violonista mineiro, e um reencontro com os camaradas Betinho e Henfil. “Eu não conheci pessoalmente o Chico Mário, mas era muito amigo dos irmãos”, conta o cineasta.
Chico Mário é um daqueles artistas geniais de quem nem todo mundo ouviu falar. Além do talento musical, a história de vida dramática, interrompida abruptamente, e o parentesco com nomes ilustres tornam sua trajetória singular.
(Silvio Tendler)
Cineasta engajado e premiado, ao longo da carreira, Silvio Tendler levou às telas as biografias de nomes cruciais da vida brasileira, como Juscelino Kubitschek, João Goulart, Castro Alves, Glauber Rocha e Carlos Marighella. O diretor defende que, assim como as outras personalidades retratas por ele, Chico Mário é uma estrela de primeira grandeza e merece todo o respeito, carinho e reconhecimento.
“Ele é tão importante para a música quanto o Milton Santos para a geografia, o Josué de Castro para a questão da fome, o Glauber para o cinema, o Castro Alves para a poesia e o Marighela para as transformações sociais”, analisa o cineasta.
“O Chico Mário era muito fã do Silvio Tendler, adorava os filmes do JK e Jango”, comenta Marcos Souza. “Então, temos certeza de que ele aprovaria a escolha e ficaria honrado em ter o Tendler como diretor de um filme sobre ele”.
Legado vivo
(Jaime Alem)
Por conta das comemorações pelos 70 anos de nascimento de Chico Mário, em 2018, Marcos Souza empreendeu uma série de eventos para celebrar a obra do pai. Um deles foi a execução de músicas de Chico Mário pela Orquestra Ouro Preto, com arranjos do maestro Jaime Alem. A equipe do filme foi enviada para Belo Horizonte e registrou o concerto para o documentário.
“Silvio não sabia para que lado ia, se teria um viés político, mas ele foi descobrindo a obra do Chico Mário e ficou encantado”, comenta Marcos Souza. A maior parte do filme foi gravada na capital mineira, com depoimentos de amigos e familiares, e traz ainda personalidades da música como Lenine, Antonio Adolfo, Tárik de Souza e Weber Lopes, além do próprio Jaime Alem. Os violonistas Gilvan de Oliveira, Geraldo Vianna, João Camarero também participam dos depoimentos.
(Tárik de Souza)
Tárik de Souza foi parceiro do violonista em uma composição. No filme, ele conta que, quando compunha, Chico Mário sabia exatamente onde queria chegar, que influência queria usar e o que queria transmitir. “Era essencialmente um músico instrumentista, que de vez em quando se aliava a letristas. Mas ele também sabia fazer letras. Escrevia poesias e teve três livros publicados”, observou o crítico.
Foi Tárik quem apresentou Chico ao pianista e compositor carioca Antonio Adolfo, também um pioneiro do disco independente no Brasil. Quando se conheceram, o violonista mostrou ao novo amigo o repertório quase completo do que seria seu primeiro álbum, Terra, gravado em 1979. Adolfo tocou em quase todos os discos do mineiro.
(Antonio Adolfo e Chico Mário)
“Já no primeiro corte a que assisti, eu fiquei encantado”, relembra Marcos Souza, que destaca o papel central da música em toda a produção. “Silvio Tendler deixou a obra do Chico Mário bem presente para que o público pudesse ouvi-lo, tanto na orquestra quando no violão e na voz”, celebra o filho.
No âmbito familiar, além dos filhos Karina, Ana e Marcos, da esposa, Nívia, e das irmãs Filó e Glória Souza, um personagem inesperado ganha destaque: um baú antigo repleto de poemas inéditos, diários, fotos, papeis e objetos de Chico Mário. O baú foi presente de Henfil para o irmão, trazido da China, e o objeto acompanhou a família por todas as casas em que viveram. “(Ele guarda) muitas lembranças de nosso pai”, diz Souza no longa-metragem.
Trajetória tortuosa
Chico Mário, Betinho e Henfil foram tema do documentário Três Irmãos de Sangue, de 2006, dirigido por Ângela Patrícia Reiniger. Os três faziam parte da prole de oito filhos de Henrique José de Souza e de Maria Figueiredo de Souza. Chico poderia ter sido ofuscado pelo brilho de seus dois irmãos, ambos imensamente conhecidos e admirados em suas áreas de atuação. Mas foi no violão que ele encontrou sua forma de expressão – e brilhou.
O violonista ficou conhecido nacionalmente pouco antes de sua morte. Dedicado à música instrumental e em busca de uma carreira independente da grande mídia, ele havia gravado cinco álbuns até então. Foi por conta da hemofilia, que o obrigou a passar muitas horas na cama, que Chico conseguiu se dedicar ao instrumento.
(Chico Mário em show de lancamento do primeiro LP, em 1978. Foto Fernando Castro)
Ele começou a estudar música aos cinco anos de idade e teve aulas de violão com Henrique Pinto. Com Roberto Gnattali, aprofundou-se no estudo de arranjos e harmonia. Mudou-se para Rio em 1978, após morar algum tempo em São Paulo, e, no ano seguinte, gravou e lançou seu primeiro disco, Terra. Ao longo da carreira, desenvolveu parcerias com diversos artistas consagrados, como Joyce, Aldir Blanc, Ivan Lins e Danilo Caymmi.
Formado em economia e com atuação no jornalismo, ele compôs 89 músicas e criou o aclamado Método Musical de Cores para Crianças, que trazia elementos do folclore brasileiro e foi utilizado em escolas do país.
Chico Mário ficou sabendo que havia contraído Aids em 1987, assim como seus irmãos, mas continuou produzindo. Realizou o último concerto em novembro daquele ano, no Rio, e em dezembro diversos artistas participaram de um show para levantar fundos para o tratamento dele, a exemplo de Milton Nascimento, Chico Buarque, Gonzaguinha, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola e Fagner.
(Nívia Souza)
Quando morreu, Chico Mário havia deixado material suficiente para o lançamento de três discos. Quem cuidou da produção foi a viúva, Nívia Souza. No total, foram oito discos lançados, além dos três livros. Agora, com o documentário dedicado inteiramente a sua vida e obra, o Brasil terá a chance de reencontrar-se com as obras de Chico Mário.
Para Silvio Tendler, a importância do mineiro enquanto artista é máxima, mesmo que infelizmente ele não tenha tido em vida o papel de destaque que merecia. “Ele tocou com muitos músicos e fez grandes parcerias, além de ter um protagonismo grande na independência do artista como seu próprio produtor musical, mas não teve o devido valor”, aponta o cineasta. “Agora, finalmente, ele está sendo redescoberto. Espero que Chico Mário recupere esse espaço que é dele e volte a influenciar os artistas e o público em geral”, diz o diretor. “E ficarei feliz se o filme colaborar com isso”.
(Chico Mário)