O pensamento pedagógico-musical de Violeta de Gainza
(Violeta de Gainza)
Por Fábio Carrilho *
(Especial para o Acervo Violão Brasileiro)
Quando o tema é pedagogia do violão, o enfoque recebido nos meios acadêmicos costuma priorizar metodologias e assuntos técnicos-interpretativos voltados à formação especializada em comparação, por exemplo, ao trabalho direcionado ao público iniciante. O diálogo com propostas pedagógicas de educadores musicais contemporâneos também é escasso, pela dicotomia ainda existente entre os universos da "formação instrumental" e da "musicalização", um grande desperdício em termos educativos.
Pouco conhecida pela classe docente violonística brasileira, a pianista e psicopedagoga argentina Violeta Hemsy de Gainza (n.1930) é personalidade de grande importância no cenário internacional da educação musical desde os anos 1970. Autora de dezenas de livros, abrangendo títulos sobre pedagogia musical, a didática instrumental, a improvisação, a musicoterapia, a eutonia e a psicopedagogia, Gainza é entusiasta do conceito de abertura pedagógica na música, abordagem educativa de caráter humanista que ultrapassa os limites do construtivismo, a qual é plenamente aplicável ao ensino-aprendizagem do violão, independente do estágio em que o aluno ou a aluna se encontra.
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Membra vitalícia da Sociedade Internacional de Educação Musical (ISME), Gainza é idealizadora do Foro Latinoamericano de Educação Musical (FLADEM), instituição autônoma que reúne profissionais da educação de diversos países e que corresponde ao principal centro de debate sobre educação musical na América Latina. As ideias de Gainza envolvendo o conceito de abertura pedagógica são compartilhadas por diversos educadores e educadoras associados ao FLADEM, como Alejandro Simonovich (Argentina), Carmen Méndez Navas (Costa Rica), Andrea Tejera Iriarte (Uruguai), além das brasileiras Teca Alencar de Brito e Marisa Fonterrada. O assunto "abertura pedagógica" é recorrente no principal espaço de discussão do FLADEM, o Seminário Latino-Americano de Educação Musical (SLADEM), que ocorre anualmente sempre em um país diferente, assim como nas publicações da instituição.
Abertura pedagógica
Gainza afirma que o conceito de abertura pedagógica surgiu como resposta à situação da educação musical latino-americana no final do século 20 que, em plena era do neoliberalismo, rendera-se ao fascínio pelas modas e modelos educativos que vinham se multiplicando. Segundo ela, as relações entre reflexão e prática nos territórios da educação, principalmente na área das artes, teriam se enfraquecido à medida em que se fortaleceram o enfoque condutivista e a pesquisa educativa, que passou a ser considerada como a mola mestra da eficiência.
O conceito de abertura pedagógica, também chamado de "pedagogias abertas", compreende a fase mais recente de pensamento de Gainza. Apesar de diversas obras do início da trajetória da educadora apresentarem tais ideias sem fazerem uso desta nomenclatura, a expressão "abertura pedagógica" passa a aparecer em seus trabalhos de forma conceitual a partir dos anos 1990, ganhando força, inclusive, pela ação do FLADEM. Neles, os conceitos são elencados sem uma grande preocupação quanto à sua organização de maneira unificada, aparecendo de maneira esparsa, porém constante e incisiva, de acordo com as temáticas abordadas.
Viés construtivista, porém sem prender-se a ele
De modo geral, a abertura pedagógica idealizada por Gainza compreende uma ação docente inspirada, em muitos aspectos, nas abordagens educativas ditas "construtivistas" presentes no ensino regular. Em seu artigo “Movimientos y tendencias en la educación musical en la era de la diversidad”, de 2015, Gainza define a abertura pedagógica como uma ação personalizada que teria como objetivo, através da experiência e da reflexão, promover ao educando a dose de autonomia necessária para que pudesse se desempenhar como protagonista ativo em seus próprios processos de desenvolvimento e aprendizagem.
(Violeta de Gainza)
A educadora parte da premissa de que o conhecimento musical ocorre a partir de uma reflexão sobre a própria vivência musical, que poderia abarcar a observação crítica do objeto musical e da atividade ou conduta humana que o origina, entre outros aspectos. Por meio dessa retroalimentação entre experiência e reflexão, seria possível, segundo Gainza, chegar ao conhecimento como uma fase ou nível superior em relação à própria experiência, atuando-se para conhecer e conhecendo-se para controlar a realidade sonora com maior plenitude e independência.
A ideia de uma ação docente condutivista e unilateral é descartada pela autora. Por considerar que o conhecimento circula em todas as direções, organizando-se e completando-se de maneira paulatina, Gaiza vê como essencial a presença de um clima no qual importam tanto as perguntas, dúvidas, explicações e pedidos dos alunos, quanto às sugestões e pedidos do professor.
Apesar da influência construtivista, Gainza não considera adequado prescrever maneiras de se ensinar e/ou aprender por meio da abertura pedagógica, pois uma educação verdadeiramente aberta não reconhece limites para seu desenvolvimento. Segundo ela, os docentes deveriam ter a capacidade de observar e interpretar criticamente, a partir da realidade, a sua própria ação pedagógica.
Gainza afirma ser possível detectar o que caracteriza o contrário das pedagogias abertas, as “pedagogias fechadas”, cujas características são: a rigidez e a falta de flexibilidade frente ao previamente estabelecido em relação às metas, recursos e processos educativos; o autoritarismo desde o planejamento até a ação; o mecanicismo e a falta de protagonismo do estudante nos processos de ensino-aprendizagem; a linearidade em vez da interação, a fragmentação em vez da construção, a análise antes da síncrese; entre outras.
Currículo aberto e a questão dos métodos
Outro alicerce fundamental da abertura pedagógica é a negação de estruturas curriculares rígidas e de procedimentos de ensino planejados de maneira a não considerar os interesses dos alunos. A abertura pedagógica, na leitura de Teca Alencar de Brito, educadora e autora brasileira associada ao FLADEM, significa, por exemplo, não se vincular a modelos, sem, no entanto, ignorá-los, o que implicaria em uma ampliação da visão docente, a qual deve discernir entre o aceitável e o descartável.
(Violeta de Gainza)
O modo de aplicação dos métodos musicais, segundo Gainza, integra a discussão sobre abertura pedagógica. A educadora argumenta que não seria possível aprender tudo a partir de um único método, na medida em que cada um deles privilegia um aspecto particular do processo, sendo todos válidos e complementares. Dessa maneira, não exclui a sua utilização, desde que feita de maneira maleável, criativa e criteriosa
Em seu artigo, “Aplicación de los distintos métodos a una didáctica general”, de 1969, salientava, a necessidade de uma conduta docente aberta frente aos métodos que aplica, de modo que fosse capaz de recriá-los a partir do reconhecimento da essência de cada um deles. Para ela, do mesmo modo que uma obra de arte musical deve ser recriada pelo intérprete que a executa, o docente que aplica um método que não tenha sido o autor deve tratar de recriar a visão pedagógica de seu criador e perceber as essências que o motivaram sem se apegar aos recursos e procedimentos que serviram para colocá-lo originalmente em prática.
Modelo artístico de educação musical
As práticas criativas e o chamado modelo artístico de educação musical integram a abertura pedagógica proposta por Gainza, a qual valoriza a ideia de que "música se aprende fazendo música". A educadora defende um processo de aprendizagem "de dentro para fora", na medida que considera que a educação musical tradicional se concentrou intensamente no ensino da técnica com duas obsessões fundamentais: como proceder para ler a música escrita e, depois, como proceder para poder executá-la.
A concepção dos seres humanos como "máquinas decodificadoras" de uma linguagem escrita, atividade que demanda uma grande energia, faria as pessoas, segundo Gainza, operarem em um nível mental muito pobre, embora fossem treinadas e chegassem a ser excelentes leitores. Este processo seria realizado de “fora para dentro” e o professor contemporâneo deveria ter como objetivo o processo educativo-musical inverso, realizado “de dentro para fora”, buscando resgatar e integrar os aspectos musicais e individuais descuidados na educação tradicional, considerando o público iniciante como intérpretes, compositores, maestros e ouvidos qualificados em potencial.
Ao analisar a educação instrumental, Gainza elenca outro princípio básico, o “fazer para conhecer”, defendendo que, desde o primeiro dia de aula, o aluno deve ser estimulado a se conectar de maneira direta com o instrumento, deixando de lado qualquer tipo de condicionamento externo, por exemplo, o aprendizado prévio ou prematuro da técnica ou da leitura musical. Em relação ao enfoque técnico com o público iniciante, principalmente o infantil, recomenda aos professores que não tenham uma conduta obsessiva ao ponto de impedirem a participação ativa e a adesão do aluno.
Para a educadora, a figura docente é peça-chave, a qual deve fazer uma ponte eficaz entre o sujeito e o objeto do conhecimento musical, atuando como uma espécie de motivador, orientando, guiando e ajudando os alunos para que desenvolvam sua musicalidade de forma natural. Em um processo de ensino personalizado, o professor deve, segundo ela, conectar-se ao projeto de cada aluno e fazê-lo também seu, de maneira que, ao redor deste vínculo criado, o conhecimento musical prospere e se desenvolva.
Educação instrumental
Entre os títulos de sua produção bibliográfica direcionados à formação instrumental, um clássico é "Palitos Chinos (Chopsticks)", de 1987, direcionado a iniciantes no piano. Nele, a autora apresenta uma coletânea de 30 peças que demandam a utilização apenas dos dedos indicadores das mãos direita e esquerda. Ao propor tal dedilhado, a autora "resolve" rapidamente a questão técnica, trazendo o foco para questões musicais e para a exploração do instrumento, propiciando um acesso direto ao teclado. Os ganhos dessa abordagem são evidentes, por exemplo, no campo da motivação, uma vez que propicia aos alunos o sentimento de se estar fazendo música de imediato, encorajando-os aos passos seguintes do aprendizado
Outra obra clássica são os quatro livros da série "Jugar Y Cantar con La Guitarra", lançada duas décadas antes, em 1967, produzida em parceria com a violonista e educadora Eva Kantor. Nesta seleção de canções e melodias do repertório universal adaptadas para peças solo e pequenos grupos, as autoras inserem o canto na aprendizagem, abordagem pouco presente no ensino do violão clássico. A abertura proposta pelas autoras, aliás, acontece no próprio conceito do que se considera "violão", ao não delimitar fronteiras entre o clássico e o popular nos estágios iniciais do aprendizado.
Ao longo das propostas, percebe-se a grande preocupação com a questão da mudança de cordas, com as melodias sendo apresentadas progressivamente por "set" de cordas (sobre uma corda, duas cordas, três cordas, etc), assim como nas mudanças de posição, com as autoras trazendo de imediato melodias sobre a mesma corda em posições superiores, algo pouco comum, por exemplo, explorando o pentacorde menor sobre duas cordas vizinhas.
Sobre a parte técnica, os saltos de complexidade são pequenos, com as atividades buscando a iniciação auditiva ao universo tonal, por exemplo, por meio de escalas tocadas sobre duas cordas com transporte, valorizando o movimento horizontal em comparação ao vertical. A preocupação com o aproveitamento da disposição dos dedos da mão esquerda permeia grande parte deste trabalho, funcionando como ferramenta para o desenvolvimento auditivo e teórico.
Entre as estratégias de aulas, destacam-se o acompanhamento de canções fazendo-se apenas os baixos, transporte de tonalidade usando acordes com pestanas, o aprendizado de intervalos por meio das disposições de dedos da mão esquerda e as improvisações atonais por meio de "desenhos inventados".
Sobre práticas criativas, o livro "Nuestro amigo el piano" é um bom exemplo do que é possível ser trabalhado em termos de composições originais com os alunos. Nesta coletânea de 50 peças instrumentais compostas exclusivamente por alunos iniciantes, Gainza ilustra sua maneira de trabalhar o processo de aprendizagem criativa. A introdução da obra merece atenção, com a autora fazendo um apanhado dos assuntos abordados, incluindo modos, acordes, ritmo, esquemas ou fórmulas de acompanhamento, forma musical, sinais de expressão e matizes sonoras.
À classe docente violonística, são três obras pinçadas da vasta produção de Gainza as quais, nas palavras da própria autora, estão aí para serem recriadas, adaptadas e reinventadas por meio da ação docente. Certamente tem, ao lado do conceito de abertura pedagógica, muito a contribuir ao ensino-aprendizagem do violão.
(*) Fábio Carrilho é guitarrista, arranjador e pesquisador musical. Mestre em Música pela Universidade de São Paulo na área de Processos de Criação Musical, desenvolve pesquisa voltada ao ensino do instrumento com ênfase nas pedagogias abertas e na aprendizagem criativa. É diretor musical de La Caravana Orquestra. Fabio Carrilho também é autor da dissertação Pedagogias abertas e o modelo artístico no ensino do violão para iniciantes, disponível na Biblioteca do Acervo e que pode ser baixada clicando aqui.