O disco Alegria de Viver, do violonista Lula Galvão, é analisado faixa por faixa por Conrado Paulino
(Lula Galvão)
Por Conrado Paulino
Especial para o Acervo Violão Brasileiro
O CD Alegria de Viver, de Lula Galvão, é um aguardadíssimo disco de um músico genial que nos regala com seus maravilhosos e inovadores arranjos de temas também maravilhosos. Gravado, mixado e masterizado por Klaus Genuit nos Hansahaus Studios (Bonn, Alemanha) nos anos de 2016 e 2018, é um trabalho altamente recomendável consumir sem moderação. E que merece ser analisado faixa por faixa. Então vamos:
Maracangalha (Dorival Caymmi)
Esta primeira faixa já mostra a essência da arte de Lula Galvão. Funciona como um resumo do que vem pela frente, embora o CD como um todo vai melhorando faixa a faixa. A estrutura é clássica: intro, tema, improviso, tema, volta na intro e fim. A intro – criação dele – já mostra a colaboração (e até podemos chamar de interferência) de Lula com a composição. E já no 00:29 aparece o Wagneriano acorde maior com sétima maior, nona aumentada e décima-primeira aumentada - no caso um CMaj(#9)(#11) - tão caraterístico do seu estilo. Esse acorde isoladamente soa “errado”, mas, com o bom gosto do Lula cai perfeitamente. O Lula improvisa alternando single notes com blocos de acordes, sem deixar cair o andamento nem atrapalhar o suingue. E aqui cabe destacar que a improvisação desacompanhada é um desafio muito maior que a improvisação com banda, circunstância em que tem outros instrumentos – como contrabaixo, piano, etc – dando suporte ao improvisador.
(OUÇA FAIXAS SELECIONADAS DO CD)
O violonista Lula Galvão e a renovação harmônica da música brasileira
Céu e mar (Johnny Alf)
Uma composição mais conhecida do que gravada do grande e fundamental Johnny Alf. É muito oportuno termos agora uma versão solo. O arranjo começa discreto (dentro do “padrão Lula Galvão”), mas, na reexposição do tema A acontece uma rearmonização espetacular. São apenas 10 segundos (entre 01:14 e 01:24) que valem por várias horas de aulas de harmonia. Percebe-se nessa rearmonização que Lula ouve mentalmente um conjunto acompanhando-o, de forma que há quebradas rítmicas e acordes além da melodia que caberiam perfeitamente num arranjo para grupo. Mais uma vez, ele faz dois “chorus” do tema completo, improvisando desacompanhando. Mais um improviso maravilhoso, em que se destacam as suas frases em sextinas, outra característica do artista.
Radamés e Pelé (A.C.Jobim)
Todo músico sente o “baque” ao encarar composições de Jobim. Algumas delas são tão bem amarradas no aspecto melódico e harmônico que parece nos inibir. No mínimo, a gente ouve um aviso do além que nos adverte: “olha o que você vai fazer...” Me parece que Lula quis respeitar a composição do mestre soberano e, desta vez, quase não interferiu. Adaptou-a muito bem para o violão (passando-a para Mi menor) e fez um curto - e bonito – improviso sobre a repetição do A.
Zanzibar (Edu Lobo)
Excelente releitura de um tema que, como Céu e Mar, é mais conhecido do que gravado. Mais uma vez Lula preferiu manter-se bastante próximo da composição original, inclusive, sem improvisação. Talvez exista alguma outra versão, mas esta é a única adaptação para violão solo que eu conheço. Existe a incrível versão do Brasil Guitar Duo, mas, é para dois violões.
Carinhoso (Pixinguinha)
Uma introdução toda de “falsos harmônicos”, técnica consagrada por Lenny Breau e hoje muito usada pelo virtuose Tommy Emmanuel, leva a exposição do 1° A com uma bela 2ª inversão de CMaj7 que aproveita o “Si” solto. A inversão não é novidade, mas o segredo é saber usá-la na hora certa, como Lula fez. Vale a pena prestar atenção na série de acordes em bloco entre 00:44 e 00:50, uma espécie de explosão de acordes que parecem surgir de repente, outra característica do Lula. Aliás, toda a parte B é muito mais que uma explosão, é uma bomba atômica de harmonia surpreendente e criativa. Harmonicamente, é um dos pontos altos do disco.Do ponto de vista musical, é um grande desafio tocar tantos acordes e que não pareça um excesso forçado, um virtuosismo vazio ou algo cerebral. E, do ponto de vista técnico, é muito difícil de executar. Não se trata só de tocar muitos acordes. Tem que tocá-los com fluência, limpos, leves e musicalmente justificados. Claro que o artista se sai vitorioso desse desafio.
Rapaz de bem (Johnny Alf)
Outro clássico do já citado Johnny Alf, compositor que é uma das pedras fundamentais da moderna música brasileira. É mais um samba em andamento rápido, estilo em que Lula, como Baden, navega com incrível facilidade.
A introdução está em 7/8, um compasso muito usado por ele, dividido em 4 + 3.
O arranjo está no tom original, Fá maior, pouco frequente no violão, mas, que neste caso oferece algumas oportunidades de baixos com corda solta que ajudam. No geral, os arranjos de samba tendem a ser muito “verticais”, sem vozes secundarias ou contracantos. Mas neste caso Lula conseguiu encontrar espaços para o uso de retardos nos acordes e algumas vozes internas que enriquecem o arranjo sem, no entanto, lhe fazer perder a fluência ou o suingue.
Mais uma vez o arranjo segue o esquema tradicional: intro, tema, improvisação, tema e final. E, como é de se esperar, Lula reserva para a última exposição do tema a rearmonização mais ousada, ou seja, na hora certa. O final é um “turnaround” bacana baseado na harmonia da introdução, também em um curiosamente suingado 7/8.
Jorge do fusa (Garoto)
Se o que acontece no B de Carinhoso é uma explosão de acordes, o que seria o que ouvimos no 1° A deste super clássico de Garoto? Vou tomar a liberdade de batizar de “Big Bang de acordes”. Talvez esse A de apenas 54 segundos seja o resumo da carreira de Lula Galvão. Pelo menos do ponto de vista da harmonia. Na realidade, no disco todo há grandes momentos de rearmonização, distribuições surpreendentes de acordes, etc. Mas esses 54 segundos, de alguma forma, condensam tudo o conhecimento e a musicalidade inovadora deste artista. Depois desse “A”, a exposição se apresenta muito próxima da partitura original, com o diferencial de um belo e quebrado improviso sobre a repetição do tema. Assim como “Carinhoso”, para regravar “Jorge do fusa” precisa muita criatividade justificar musicalmente mais uma gravação dessa composição.
Alegria de viver (Luiz Eça)
Luiz Eça foi um dos maiores pianistas, compositores e arranjadores que o país conheceu. Mas, apesar de ter gravado mais de 30 discos, seu nome permanece pouco conhecido. Lula Galvão resgata com sabedoria uma das suas composições, um bonito samba de andamento médio, mais uma vez interpretado seguindo o esquema de “intro, Tema, improvisação, tema e fim”.
A introdução – criação do Lula – é um festival de tríades abertas que gera uma sonoridade cativante, algo próximo de uma peça erudita. As composições de Luiz Eça se caracterizam por constantes e surpreendentes modulações, o que torna a improvisação mais desafiadora.
Brigas nunca mais (A.C.Jobim)
Provavelmente, toda a primeira exposição do tema seja o mais original e surpreendente entre todos os arranjos do CD. É uma grande mescla de contracantos, blocos e rearmonizações interessantes e que prendem a atenção do ouvinte. Mas, no fim, tudo desemboca no velho e bom samba rápido, território em que Lula transita muito à vontade. Para nossa felicidade, nesta música Lula improvisa três chorus inteiros, combinando escalas, acordes e blocos sem nunca perder o suingue, nem ficar tenso, mesmo sendo a música mais rápida do disco.