Música inédita de João Pernambuco é descoberta pelo Instituto Piano Brasileiro
Um choro inédito de João Pernambuco (1883-1947) acaba de ser rastreado pelo Instituto Piano Brasileiro (IPB) do baú de fitas-rolo da pianista Neusa França (1920- 2016), agora divulgada com exclusividade pelo Acervo Digital do Violão Brasileiro. Quem toca a peça é Alfredo Medeiros (1893-1961), em sarau na casa de Neusa, na Visconde de Pirajá, Ipanema, Rio, em 5 de novembro de 1958. Alfredo é parceiro de João na música. Mais uma vez quem me revela a preciosidade é o amigo Alexandre Dias, pesquisador, pianista e diretor do IPB. Ele é o mesmo camarada que semana passada me trouxe cinco gravações inéditas de Baden Powell
Fico chapado logo nos segundos iniciais da fita. Além de fabulosa, é a cara de João Pernambuco. Ali tem tudo dele: os harmônicos típicos que usava em temas como Sonho de Magia, o molejo na linha dos choros Interrogando e Pó de Mico. É curiosa essa parceria com Alfredo Medeiros, que também é pernambucano e um dos grandes incentivadores do violão no Recife e no Rio de Janeiro, autor do lindo Choro Triste. Medeiros também já participou de recitais de Agustín Barrios, em turnê pelo Nordeste e conviveu muito com Jacob do Bandolim. Devia ser amigo do João. Mas não havia sinal até então de que os dois um dia sentaram juntos pra criar.
João Dias, Conceição Dias, Rui de Morais e Silva, Alfredo Medeiros e Jacob do Bandolim
Se nas descobertas da semana anterior sobre o Baden, tive insônia (título de uma das gravações encontradas), esta do João foi um rebuliço (nome quase igual a outro choro do violonista). Corri atrás do grande maestro Leandro Carvalho, atualmente diretor artístico e principal regente da Orquestra do Estado de Mato Grosso. Leandro iniciou a carreira como violonista, gravando discos como o Descobrindo João Pernambuco, e responsável pelo resgate de várias obras do compositor pernambucano. Ou seja, a opinião dele é a chancela.
Para o maestro, este recém descoberto choro de João Pernambuco segue na mesma linha que o consagrou como um dos fundadores do moderno violão brasileiro. “Pernambuco utilizava, dentre outros recursos, posições fixas de mão esquerda que navegavam pelo braço do instrumento e que, associadas às cordas soltas, criavam sonoridades singulares. Nesta curta peça, chama atenção os arpejos virtuosísticos que a conectam com os Estudos de Heitor Villa-Lobos, e com peças menos conhecidas do próprio Pernambuco, como Pensando em Augustinha e Valsa em Lá”, analisa Leandro Carvalho.
Segundo ele, no entanto, fica ainda a pergunta: como a gravação feita ao vivo inclui apenas duas partes, haveria uma terceira? Isso é o que vamos tentar descobrir daqui pra frente.
Leandro Carvalho
Também liguei às pressas para Jorge Carvalho de Mello, biógrafo de Garoto e co-autor do livro sobre Newton Mendonça e um dos maiores especialistas do país sobre a vida e a obra de João Pernambuco. A visão dele é quase um carbono 14. “Essa música inédita provavelmente foi composta por volta de 1929 ou pouco depois, talvez 1931, por aí. Não acredito ser da fase inicial. Tem as digitais do João, sem dúvida. É uma descoberta e tanto. Um golaço”.
Quem também destaca a importância da descoberta é o pesquisador, concertista e professor de violão da Universidade de Campinas, Gilson Antunes. “É uma música fantástica, das melhores de João Pernambuco, pelo contorno melódico, os harmônicos, ligados, escalas. E tem sequências harmônicas que lembram realmente o João. Ele utiliza praticamente o braço inteiro do violão. Temos de tirar essa música e tocar, divulgar”.
Aos poucos a obra de João Pernambuco vai sendo recomposta, fruto de um interminável quebra-cabeça. Antes de Alexandre Dias trazer este tema à tona, Jorge Mello havia encontrado o manuscrito da partitura Polca da Bravura nos arquivos de Jacob do Bandolim, que em breve o Acervo vai editar e gravar, num projeto em parceria com o violonista Luís Carlos Barbieri. Já nos anos 2000, o violonista e compositor Maurício Carrilho, descobriu a toada Caminhos do Sertão, recentemente gravada no CD de estreia de João Camarero.
Leandro Carvalho, por sua vez, vasculhou temas maravilhosos em meados nos anos 1990. Um pouco antes, em 1992, o violonista Caio Cezar também gravou temas inéditos em CD, num trabalho inteiramente para violão solo. Em 1983, o pianista Antônio Adolfo e o grupo Nó em Pingo D`Água lançaram um fundamental LP dedicado ao compositor.
A maior contribuição e o passo inicial, porém, foi de Turíbio Santos, que em 1977 gravou o LP Choros do Brasil, editou diversas partituras do compositor pela Ricordi. Graças a Turíbio, a música de João Pernambuco voltou a ser obrigatório no repertório de violonistas do mundo inteiro. Raphael Rabello também foi fundamental neste sentido. Mas antes de Turíbio, só se tocava Interrogando e Sons de Carrilhões (esta música, por sinal, é das peças brasileiras mais gravadas e tocadas do mundo).
João Teixeira Guimarães, o João Pernambuco, é um dos maiores artistas brasileiros da primeira metade do século 20. É o primeiro grande compositor de choro para violão solo do Brasil e influenciou grandes nomes como Villa-Lobos. João é também um dos pais da canção sertaneja, tendo liderado diversos movimentos musicais em Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Um deles é o Grupo Caxangá, que reunia diversos músicos, que se apresentavam de sandálias e chapéus de couro, tocando e cantando emboladas, cocos, sambas e choros. Pixinguinha e Donga integravam este grupo, que depois foi reduzido a oito instrumentistas e passou a se chamar Os Oito Batutas.
A biografia de João Pernambuco ainda não foi devidamente contada, pois precisa ser redimensionada. Eu e Jorge estamos cuidando disso e em breve vamos relevar novidades. Por enquanto, mais uma vez parabenizamos Alexandre Dias e o Instituto Piano Brasileiro, pelas descobertas e contribuições impressionantes. Já sabíamos o quanto as fitas-rolo dos anos 1950 salvaram muito da nossa música, com áudios que somente eram reveladas décadas depois. As atuais pesquisas de Alexandre, no entanto, indicam que essas fitas ainda vão salvar tesouros musicais que, por ora, estão desaparecidos.
João Pernambuco (sentado ao centro) e Os Oito Batutas