Morre Antonio Manzione, maestro que ensinou as primeiras notas musicais a grandes nomes do violão brasileiro
(Antonio Manzione)
Por Elcylene Leocádio
O Acervo Violão Brasileiro homenageia o violonista e maestro Antonio Manzione, que faleceu aos 86 anos, vítima de câncer, em 26 de janeiro. Sua morte comoveu a comunidade de violonistas e a todos que conviveram com ele. Esse texto marca o momento de sua partida, mas deve ser lido como um registro aberto, que pode e deve receber novas contribuições de quem conviveu com esta figura que expandiu o horizonte do papel de um professor.
“Manzione é o exemplo de homem que muda a perspectiva de uma criança fazendo-a ter certeza de que o futuro é bonito”, afirma o violonista e compositor Ulisses Rocha, em um texto emocionado publicado no Instagram, ao saber da morte de seu primeiro professor, Antonio Manzione.
A beleza desta imagem traduz em poucas palavras a grandeza do trabalho de Manzione, que movido pelo amor à música e ao violão, criou um método de ensino coletivo que leva o seu nome e lhe permitiu assistir cerca de 27 mil alunos.
Breve linha do tempo
Antonio Manzione nasceu em São Paulo, no dia 21 de 0utubro de 1934. Teve aulas de violão com Isaias Sávio (1900-1977) e formou-se em 1962 pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Em 1969, no 2° Seminário Internacional de Violões em Porto Alegre, ele lançou o Sistema Coletivo de Ensino de Música, conhecido como Sistema Manzione. Três anos depois, em 1972, ele mudou-se para Santos, onde deu início ao primeiro curso oficial de violão promovido pela prefeitura.
Em 1984 ele participou da criação da Camerata Heitor Villa-Lobos e regeu 1000 violões por ocasião da homenagem dos alunos ao seu aniversário de 50 anos. O evento foi transmitido pelo programa Fantástico (Rede Globo). Em 2002, a Câmara Municipal de Santos atribuiu ao curso oficial de violão da Prefeitura o nome “Curso de Violão Maestro Antonio Manzione”. E em 2004 lhe foi concedido o título de Cidadão Santista. Nesta cidade, Manzione consolidou sua carreira como professor e viveu até os seus últimos dias.
Manzione segundo os alunos
Em depoimento ao Acervo, a violonista e professora Maria Haro, que teve com ele suas primeiras aulas, define Manzione como um homem que sabia usar as palavras, cativante, acolhedor, e mais que tudo, um grande incentivador. Maria se interessou pela música erudita ainda menina. Em 1973, aos 12 anos, ela foi levada pela mãe, Maria Elena, para se matricular nas aulas coletivas de violão da Prefeitura de Santos. Mas as vagas já estavam esgotadas.
Também não era pra menos. Manzione colocava todos os alunos juntos, na mesma sala. Crianças de 7 anos conviviam com adultos de 60. Quem não sabia nada podia estudar com os iniciados. Os que começavam a se destacar iam passando seus conhecimentos aos menos adiantados. E assim, coletivamente, o grupo crescia e se apresentava nos mais diversos ambientes, conduzidos pela mão e pelo desejo do maestro de levar a música a qualquer parte.
Dona Maria Elena não se deu por vencida ao descobrir que a filha deveria esperar um ano para se matricular. E pediu para falar com o professor Manzione. Assegurou que aquela menina magrinha, já então apaixonada pela música e pelo violão, daria conta do recado. Ela queria estudar e não o decepcionaria. Dois anos depois, aos 14 anos, Maria Haro seguia os passos do professor e se deslocava sozinha (algo inusitado na época) para cidades vizinhas onde dava aulas de violão para ganhar o seu próprio dinheiro. O método usado? O mesmo do professor Manzione. Nascia naquele momento uma professora e uma grande intérprete.
(Maria Haro)
O Acervo também ouviu a violonista e pesquisadora Flavia Prando, que foi aluna do curso do Teatro Municipal de Santos, criado por Manzione, dos 9 aos 17 anos. Aos 12 ela passou a integrar a Camerata Heitor Villa-Lobos, regida por ele, onde permaneceu até se mudar para São Paulo.
Nas palavras de Flavia: “Manzione, mais do que professor de violão e criador do enorme movimento do ensino coletivo do instrumento em Santos, que disseminou o violão por todos os municípios da Baixada Santista, deixando um legado inigualável, era um grande educador. Durante quase 70 anos, gerações e gerações de alunos tiveram a "sensibilização artística através do violão", como ele denominou o seu método. Para ele o violão e a música eram uma porta de entrada para o desenvolver sensibilidades que constituem um ser humano e não necessariamente um músico. Ele certamente deixou em cada um de seus alunos uma maneira particular de enxergar a música e o violão e, eu, particularmente sou bastante grata por ter crescido neste ambiente estimulante e ter tido o Manzione como primeiro mestre”.
(Flávia Prando)
O sentimento de Ulisses Rocha segue na mesma direção: “Hoje me despeço do meu primeiro professor. Antônio Manzione amava o violão e não se contentava em apenas ensinar. Ele queria espalhar pelo mundo o amor pelo instrumento. Ele teve milhares de alunos e se dedicou a todos com a mesma atenção e carinho com que se dedicou a mim. Ele vinha na minha casa, me dava aulas de violão, jogava futebol de botão com meu irmão e depois papeava com meu pai. O amor dele me fez amar o instrumento e a vida que tenho hoje. Ele sabia incentivar, aconselhar, cobrar desempenho, mas sempre com um sorriso brincalhão nos lábios e um positivismo de dar gosto. Manzione é o exemplo de homem que muda a perspectiva de uma criança fazendo-a ter certeza de que o futuro é bonito. Não me emociono facilmente, mas hoje é diferente. Perdi uma mão amiga, meu primeiro norte, parte do que sou hoje. Dedico a ele a frase mais verdadeira que ouvi sobre o que é ensinar: “Um aluno é o que o professor espera dele”. Ele só queria o melhor para todos nós”.
Antonio Manzione realizou mais de 1000 apresentações, 500 recitais e recebeu mais de 700 premiações entre troféus, medalhas, placas e diplomas. Mas sua vocação era seguramente o ensino. Ele tinha orgulho de ser maestro, palavra que significa mestre no idioma espanhol.
Para além do ensino
(Ulisses Rocha)
O maestro Manzione estudou e foi assistente de Isaías Sávio, considerado o maior professor de violão do Brasil. O compositor e violonista Paulo Bellinati que estudou com Isaías entre 1966 e 1969 no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, na sua ausência, teve aulas com Manzione e nos diz: “As aulas de Antonio Manzione eram muito boas, no mesmo estilo de Sávio. Ele escutava, elogiava e incentivava enormemente o aluno a crescer. A gente saía flutuando da aula”.
Isaías e Manzione tinham em comum a generosidade e a dedicação aos alunos. Não bastava tocar bem. Era preciso estar preparado para a vida, indo muito além das lições de violão. Isaias ensinava ao aluno como se portar, como ser um artista, como entrar num palco, como se sentar diante do público. E Manzione, pouco antes de falecer, já com muita dificuldade de escrita, sintetizou o seu pensamento em uma carta aos seus alunos (não existe ex-aluno!) com uma lista de “ensinamentos” para se viver uma vida que valha a pena.
(Paulo Bellinati)
Maria Haro recebeu esta carta no final de 2020. O texto lhe chegou em pequenos trechos, fotografados, que ela transcreveu e publicou no Facebook. Aos nossos leitores recomendamos a leitura.
De Manzione aos seus irmãos na arte
Queridos alunos e professores, meus irmãos na Arte
Meu nome é Antonio Manzione. Sou maestro, com 70 anos de magistério violonístico. Aprendi, nesta longa caminhada, que ninguém se torna campeão sem trabalho. Isso serve para todas as profissões. Por trás do sucesso e da perfeição está sempre o trabalho. Vocês escolheram o violão, o segundo instrumento de mais difícil aprendizado. Só existe um instrumento de cordas fácil: o sino.
Aprendi que “aprender” é a palavra mais importante, depois de “amar”. Aprender sempre. Para que isso aconteça temos que estar focados no que fazemos. O celular, o tablet e a televisão não são bons companheiros de trabalho, pois roubam o nosso foco.
(Antonio Manzione e alunos)
Aprendi que só o talento não basta para ser um artista ou um bom instrumentista. Ele ajuda, mas não resolve. Precisa de trabalho. Aprendi também que o esforço e a dedicação do professor têm limites e que quem ultrapassa esses limites é o aluno. O professor ensina o caminho e o aluno deve percorrê-lo. Se houver vontade, idealismo e amor à arte, o resultado (será) é o sucesso.
Outra coisa preciosa que aprendi: a vaidade é péssima companheira. Não se entusiasmem achando que depois das primeiras lições já somos artistas. Não se iludam com elogios. A estrada é longa, mas é luminosa. Quanto mais avançamos, mais a luz do saber se dimensiona.
Geralmente os alunos buscam o que é fácil. Cuidado! O fácil é o amigo da preguiça e da mediocridade. Muitos se perdem pelo caminho por causa delas. Não seja um deles. Aprendi que não é o tempo de estudo mas a qualidade desse estudo é o que interessa.
Algumas recomendações são preciosas:
Nunca desista; desperte o campeão que existe em você; não inveje os melhores, lute para ser um deles. Não conheci nenhum artista sem cultura. Queiram sempre saber mais. Leiam bons livros. A leitura ajuda em todas as dificuldades. Sejam sempre agradecidos a seus professores (do início ou não...), eles iluminaram a escuridão do seu saber. Quem não pratica a gratidão ainda está no irracional, não tiveram cultura nem sensibilidade para entender o benefício recebido. O Google não é um livro. Comecem lendo e aprendendo sobre os compositores e violonistas.
Especificamente aos professores de hoje e aos futuros: o ser humano é a prioridade, não o aluno. E não se esqueçam: aluno não é cobaia, não se tornem violomaníacos. A vida não é só violão. Ele é um instrumento de lazer, arte e cultura. A vida é muito mais que isso.
Finalizando, quero responder à uma pergunta que sempre me fazem: maestro, o senhor fez tudo o que nos ensina?
A resposta a esta pergunta está em um currículo que Maria Haro nos diz que vai digitar e publicar.
Aguardemos!