Memória: há dois meses morria Chiquito Braga, precursor da harmonia mineira de violão
Por Klenio Daniel
Em 9 de dezembro passado recebi uma ligação da Denise Marun, esposa do Chiquito Braga. Ela me convidava para o show Cordas da América, que ocorreria no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro, em 17 de janeiro de 2018, no qual Chiquito dividiria o palco com o violonista argentino Luís Salinas e com o baixista chileno Christian Galvez. Acredito que esse projeto tenha a mesma temática do Cuerdas del Sur, espetáculo apresentado em fevereiro de 2016 em Belo Horizonte, cidade natal de Chiquito, que ainda contava com os grandes Toninho Horta e Juarez Moreira.
Mas enquanto acabava de resolver minha agenda para ir ao Rio no meio da semana recebi no dia 22 de dezembro a notícia da passagem do Chiquito, no Rio, aos 81 anos de idade. Nesta quinta-feira (22/02) completa dois meses da morte dele, motivado por um enfarte. Dias antes ele já estava sofrendo de insuficiência cardíaca e pneumonia.
Ouça faixas selecionadas do CD Passeando nas Nuvens, lançado em 2017
Pavane de Ravel
Nascido em 19 de março de 1936, em Belo Horizonte, Francisco Andrade Braga começou a tocar ainda criança com seu pai, José Raimundo Braga, em mercados e feiras livres de BH. Como era pequeno, Sr. José Raimundo tocava violão e Chiquito tocava cavaquinho e violão requinto. Ainda nessa época, no bairro Padre Eustáquio, Chiquito teve contato com uma de suas maiores influências musicais: Maurice Ravel. Por meio da Pavane pour une Infante Défunte, que segundo ele tocava todo dia às 18 horas numa igreja da Pedro II, Chiquito experimentava o mundo das harmonias não convencionais do impressionismo em estado sonoro.
Gostava sempre de lembrar que percebia identificação do Impressionismo com Minas Gerais, fenômeno que pode ser explicado ao admirar nossas infinitas cadeias de montanhas que não se resolvem, apenas formam continuamente diferentes texturas de cores e de sons. O nosso som de montanha.
Um pouco mais velho, quando já tocava violão e viola, teve seus primeiros contatos com a guitarra elétrica sob influência do irmão Daniel Braga. Nessa época (meados da década de 1950), já tocava em rádios da capital e em programas da TV Itacolomy, fazendo programas que iam dos mais variados gêneros, além de acompanhar músicos como Clara Nunes e Tito Madi. Foi quando seu nome começava a se espalhar também na capital do Brasil, o Rio de Janeiro.
Kenton de ouvido
Em suas falas, Chiquito sempre citava a admiração que tinha pela harmonia e o quanto ela era importante em sua música. Outra grande influência dele nessa área foi o pianista, arranjador e compositor Stan Kenton, justamente por conta das inovações harmônicas que esse fazia. Chiquito gostava de tirar de ouvido tudo de Kenton, do acompanhamento às linhas de sopro e de metais dessas peças para então estudá-las e adaptá-las dentro de seu vocabulário, aplicando assim texturas modernas nas conduções de vozes dos standards que tocava em orquestras e conjuntos da capital mineira.
O organista e acordeonista Célio Balona uma vez me contou que costumava formar grupos musicais que iam se apresentar com grandes orquestras. Enquanto elas organizavam suas partituras entre uma música e outra, o grupo menor atacava releituras jazzísticas para o baile não parar. Além do próprio Célio, participavam frequentemente desses grupos Chiquito, Rui Canelada, Bié e Hudson e outros músicos que frequentavam o lendário Ponto dos Músicos, na rua Afonso Pena, entre a Tupinambás e a Curitiba.
Elizeth Cardoso
Um dos fatos que mais me chamam atenção sobre Chiquito foi a excursão sul-americana que realizou com a cantora Elizeth Cardoso no disco Canção do Amor Demais, lançado em 1958. O LP representa o marco inaugural da Bossa Nova, tendo a batida diamantinense do baiano João Gilberto como grande referência desse movimento. Dentro do universo desse recém-nascido gênero “carioca” que incluíam suas inovações e amálgamas, o mineiro Chiquito, com 22 anos, era chamado para acompanhar A Divina, dentre todos os violonistas da cena do Rio.
Chiquito já tocava em várias locais em BH e já acompanhava vários músicos de renome nacional e internacional que ali se apresentavam. De maneira que esse convite da Elizeth pode ser encarado como um reconhecimento de como o vocabulário musical do violonista mineiro era avançado naquela época, bem como se encontrava confortável diante dessa novidade cheia de dissonâncias do jazz e associadas as síncopes do samba.
Projeto Cuerdas Del Sur (Luis Salinas, Juarez Moreira, Chiquito Braga, Toninho Horta e Christian Galvez)
O sideman
Em 1966, Chiquito se mudou para o Rio, a convite do maestro Moacir Santos, que lhe ensinou harmonia, fuga e contraponto, dentre outros assuntos. No cenário musical carioca, Chiquito consolida a carreira de sideman, músico de estúdio e arranjador. Tocou com Deus e o mundo. É difícil citar com quem Chiquito já trabalhou. Em cada conversa sempre aparece um novo nome.
Mas vamos tentar citar alguns: Maysa, Dorival Caymmi, Nara Leão, Wilson Simonal, Maria Betânia, Tim Maia, Simone, Som Imaginário, Taiguara, César Camargo Mariano, Gal Costa, Alaíde Costa, Agostinho dos Santos, Fafá de Belém, Guinga, João Donato, Beto Guedes, Leila Pinheiro, Ed Mota, Gílson Peranzzetta, Os Cariocas, Zizi Possi, Jards Macalé, Gilberto Gil, Eumir Deodato, Wilson das Neves, Paschoal Meirelles... além dos citados anteriormente. Se espremer um pouco saem mais uns 500 nomes. Chiquito teve também relevante participação na Orquestra Arco-Íris, compondo e arranjando trilhas sonoras de novelas da TV Rio, como “Irmãos Coragem”, “Gabriela” e “O Cafona”.
Discos
Ouça faixas selecionadas de Quadros Modernos
Mesmo enfurnado em estúdios, Chiquito realizou menos registros de suas músicas do que deveria. Segundo ele, já havia composto dezenas delas e estavam guardadas em casa em forma escrita ou em gravações de áudio. Gravou em 1992 o Instrumental CCBB, dividindo o álbum com Zezo Ribeiro e Alemão. Nesse álbum temos o Chiquito arranjador, compositor e improvisador, explorando essas vertentes no violão solo ou acompanhado pelo contrabaixo acústico.
Em 2001 é lançado aquele que é considerado como o maior registro da Escola Mineira de Violão Moderno, o CD Quadros Modernos, no qual Chiquito toca com Juarez Moreira e Toninho Horta, os dois maiores embaixadores dessa escola. No DVD Violões de Minas, realizado por Geraldo Vianna em 2007, temos também a peça A Lenda do Cavalo Dourado, ainda inédita. Seu primeiro disco com 100% das composições suas foi lançado apenas em 2017, o Passeando Nas Nuvens, e encontra-se disponível apenas em plataformas digitais.
Pioneirismo
Tentar mensurar a influência de Chiquito no cenário musical brasileiro é uma tarefa do tamanho de seu talento e de sua humildade. Chiquito já trabalhava com arranjos usando harmonia em bloco no fim da década de 1950, com um pioneirismo que, se tivessem sido realizados registros na época, poderia estar em escala mundial.
Célio Balona o considera “pai dos guitarristas do Brasil”. Eis mais um título para o rei da harmonia mineira. Além de “abrir os ouvidos” dos jovens músicos que moravam em Belo Horizonte nas décadas de 1950 e 1960, Chiquito também abria uma série de portas para vários desses músicos ao se mudar para o Rio. Todos iam ver Chiquito tocar.
Trecho do DVD Violões de Minas, de Geraldo Vianna
Chiquito trazia o que havia de novo e alimentava as possibilidades sonoras dentro de cada um; tornou-se referência de como um músico da cidade poderia desenvolver uma linguagem musical única e ser reconhecido também fora dos paredões do Curral del Rey, alimentando assim o sonho de se viver de música, pensamento esse muito importante na geração que veio em seguida: os sonhos.
“Harmonia” e “Generosidade”. Acredito que sejam as palavras que melhor definam Chiquito. O devido reconhecimento que mereceu em vida não veio. Não que Chiquito se importasse com isso. Mas é um fator que reflete as condições do país que vivemos, que, por não dar importância à memória, sempre está à mercê de reviver os erros de um passado nem tão distante, para citar só esses últimos dois anos.
Vá em paz, amigo. Obrigado pelo carinho, pela música e pela atenção. Não deu para gravar a “Prado” que você disse que gostaria de me ouvir tocando... À querida Denise Marun, companheira por mais de 40 anos do Chiquito, deixo aqui meus pesares e esta pequena homenagem ao mestre.
Klenio Daniel e Chiquito Braga no saguão do Teatro Bradesco, em BH, após o show Cuerdas Del Sur, em 2016