Leo Soares e a busca que todo músico precisa ter pela originalidade
(Ricardo Dias e Leo Soares)
Por Ricardo Dias
Mal postei nas redes a nota de falecimento do querido professor Leo Soares e começaram a chover mensagens, todas de muita consternação e tristeza. Ao ser convidado para escrever este texto, fiquei pensando se faltava alguma coisa para dizer, pois tive a sorte de homenageá-lo em vida. Resolvi me inspirar nas mensagens que recebi.
Em todas, o desamor dele pelo poder. Não se vê em sua biografia nenhum momento de mesquinharia, de tentar crescer à custa de outros. Igualmente a generosidade, sempre disposto a ajudar (e um depoimento pessoal neste campo: eu tinha uma reivindicação a fazer na UFRJ. Ele foi comigo à Ilha do Fundão, sede da Universidade, me ajudar. Quem mora no Rio sabe o quanto é contramão essa ida), há diversas histórias a esse respeito.
Uma das que mais me toca é a de Augusto Cezar Cornelius. Pessoa com deficiência, se sentia alijado das coisas, do mundo. Quando foi ter aulas com nosso homenageado se deparou com uma pessoa que não ignorava seu problema, mas que valorizava a individualidade. Leo jamais admitiu que um aluno copiasse alguma interpretação, algum jeito de tocar, tudo tinha que ser original. E deu a Augusto essa noção dele ser único – e valioso.
(Augusto Cezar Cornelius)
Ele transcendia a função do professor – ou, sei lá, a exercia exatamente como deveria ser; o fato é que muitos dos nossos grandes nomes passaram por suas mãos: Nicolas de Souza Barros, Zé Paulo Becker, Paulo Aragão, Marcelo Kayath, Marcus Tardelli... São dezenas, não há como mencionar todos. A segurança que passava para os alunos, a alegria, sempre com o astral elevado eram outras marcas. Sem falar na linda parceria com sua querida Ruth, companheira de muitos anos.
Há curiosidades sobre ele que poucos sabem. Sua generosidade, a que já me referi, é hereditária. Os pais do grande professor Jodacil Damaceno trabalhavam para os pais de Leo. A mãe de Damaceno faleceu e os pais de Leo criaram seus irmãos menores. Então, dois de nossos maiores professores foram meios-irmãos. Ele começou no violino, e passou para o violão dando seus primeiros passos com Jodacil, inclusive.
(Leo Soares, jovem)
Minha história com ele começa no meu fim como estudante. Era aluno de Henrique Pinto, não tinha mais como ir a São Paulo toda semana; como sou metido e quero sempre o melhor, fui atrás do Leo. Cada aula era uma fumaceira só. A minha era a última do dia. Então ficávamos conversando até o cinzeiro – de cristal, grande – ficar lotado. Fumávamos direitinho, com grande competência e entusiasmo. Mas eu não tinha mais jeito como violonista – se é que algum dia tive! - já estava enfronhado na luteria. Então com ele encerrei a carreira de músico.
Continuamos em contato. Ele me deu a honra e a emoção de representá-lo numa homenagem que a UFRJ lhe fez. Estava hospitalizado, cirurgia cardíaca complicada, e lá fui eu subir ao palco para reminiscências. Uma delas, que sempre menciono – pelo pânico que me causava – era a forma como ele dirigia. Morava numa via movimentada, de mão dupla, e cruzava a pista sem nenhum pudor ou cerimônia – ou paciência para esperar sua vez. Pois contei isso no palco e sua filha filmou. Tempos depois, já recuperado, ele me telefonou:
-Ricardo, eu te peço para me representar numa homenagem e você me esculhamba, dizendo que dirijo mal????
(Leo Soares)
Ele estava brincando, obviamente, como sempre fazia. Tive, como disse, a felicidade de homenageá-lo em vida, como também ocorreu em outubro passado, quando ele foi homenageado pela Associação de Violão do Rio de Janeiro pelos seus 80 anos. Uma festa bonita, com diversos alunos o honrando. Disse algumas palavras em agradecimento e. pela última vez. recebeu os aplausos mais que merecidos.
Violonista único, virtuoso, preciso, abriu mão dos palcos pelo ensino. Na última vez que estive em sua casa, toquei um pouco (andava estudando). Ele elogiou, disse que eu estava tocando bonito. Não resisti:
-Ora, Leo, tive aula com você!
O sorriso dele foi bom de ver. Um professor de verdade, se orgulhava até dos alunos ruins...
Deixou um mundo melhor do que encontrou, semeando música e amizade. Lega dois conceitos: a busca que todo músico precisa ter pela originalidade, singularidade, e a frase famosa, com a qual eliminava os problemas:
-Estudando, sai!
O que não sai é a saudade. Até um dia, amigo querido.