Gabriele Leite estreia concerto para violão e orquestra criado por João Luiz, unindo os madrigais e a música afro
(João Luiz e Gabriele Leite)
Por Alessandro Soares
Muita gente pensa que músico negro tem de tocar samba, jazz, maracatu, reggae ou afrobeat. Por isso a trajetória de João Luiz Rezende Lopes e Gabriele Leite às vezes surpreende justo por serem violonistas clássicos, não apenas pela excelência musical, reconhecida internacionalmente. João tem buscado romper a fronteira dessa caricatura em suas composições. É como se o italiano Carlo Gesualdo (1566-1613), famoso pelos seus madrigais, adotasse polirritmias depois de visitar um terreiro de candomblé. Esses dois mundos sonoros estão juntos na obra MadrigAfro, para violão e cordas.
Composta por João há poucos meses, a peça teve estreia mundial nesta semana, num ciclo de quatro apresentações em unidades do Sesc SP, com Gabriele Leite e a orquestra de câmara São Paulo Chamber Soloists (SPCS). O primeiro recital foi ontem, no Sesc Jundiaí, e prossegue hoje (17/06), no Sesc Sorocaba, depois no sábado (18) vai para o Sesc Consolação, às 20h, e encerra no domingo, às 18h, no Sesc Guarulhos. Os concertos ocorrem na programação do incrível 4º Festival Sesc De Música De Câmara.
Além da MadrigAfro, existem mais duas obras no programa: Variações sobre um tema de Frank Bridge, op. 10, do britânico Benjamin Britten (1913-1976), interpretado pela SPCS, e o Concerto para piano e orquestra no. 3 em dó menor, de Beethoven (1770-1827), em arranjo para quinteto de cordas e piano de Sigmund Lebert e Vinzenz Lachner, tendo como solista o pianista Cristian Budu.
(Integrantes da São Paulo Chamber Soloists - crédito: Fernando Mucci)
Foi o Festival de Música de Câmara do Sesc que encomendou a peça a João Luiz, e é dedicada à Gabriele Leite e à São Paulo Chamber Soloists. Com duração de 13 minutos, aproximadamente, MadrigAfro é, segundo João, um concertinho, dividido em três movimentos (no padrão tradicional rápido - lento – rápido), só que tocados de maneira contínua, sem parada. O primeiro deles é a Chegança, que mostra “o que é que a Gabriele Leite tem”, seu arrebatador virtuosismo, musicalidade e carisma. O segundo é o Canto, modal e tranquilo. E o terceiro movimento, Dança, é um allegro vivo, bem festivo.
Em depoimento ao Acervo, Gabriele recorda o período em que João Luiz Rezende estava compondo a peça. “Algumas vezes fui à casa dele no Brooklyn, em Nova Iorque, pra gente se conhecer melhor. Trocamos figurinhas sobre minhas influências. Falei que gosto muito de Bartok (1881-1945), de Scriabin (1872-1915) e desses movimentos musicais do início do século XX. Curioso é que João e eu temos histórias de vida parecidas de sermos pessoas pretas, mas tocamos música clássica, que é uma expectativa diferente do que se espera de nós”, diz. Desse intenso diálogo entre eles surgiu a temática da peça.
Para Gabriele, estrear MadrigAfro é desafiador. “A São Paulo Chamber Soloists é formada por 14 solistas tocando em pé e sem regente e é um desafio construir coletivamente uma peça como esta, com polirritmos e entradas. Estou amando! Muito feliz e muito honrada por João ter escrito essa peça pra mim”.
(Gabriele Leite)
Para a comunidade violonística, trata-se de um bravo e tanto, pois sabemos o quanto é difícil haver estreias de concertos para violão e orquestra na programação dos teatros. MadrigAfro acabou de nascer e já está no palco.
Quanto ao título, João Luiz nos conta que uniu as palavras madrigal e afro a partir do interesse dele pelos madrigais e a música vocal do século XVI, que estuda há vários anos. E também pela influência que o ritmo e o canto africano exercem na música brasileira. “Juntar esses dois mundos é maravilhoso para esse projeto. Aqui escrevi uma harmonia mais densa e com muito contraponto e sempre explorando essas possibilidades rítmicas”, diz em entrevista ao Acervo.
Ele vem experimentando esses materiais nas peças que cria – tanto para violão quanto para formação camerística. “Essa ideia vem de Camargo Guarnieri (1907-1993), cuja obra para violão é o tema do meu doutorado. Na verdade, estudei toda a obra dele. Guarnieri propõe que a música brasileira deve ser tratada horizontalmente, evitando blocos de acordes e a escrita vertical”.
(João Luiz)
Tal ideia estética, para João, foi perfeita para unir o madrigal pelo lado contrapontístico e o afro pelos ritmos, os atabaques do candomblé e da umbanda. “Frequentei essas religiões quando era criança. Tenho certa lembrança de como esses rituais aconteciam. E tem muito a ver com minha realidade como negro. Eu e Gabriele temos em comum essa vivência em relação à expectativa das pesssoas. Se você é negro ou joga futebol ou toca samba. Então, logo na Chegança mostramos realmente o que estamos fazendo, além do futebol e do samba, mergulhando mais na nossa identidade como negro”.
A influência do madrigal na peça de João não se restringe ao tratamento horizontal da escrita. “Tem também a questão harmônica que ouvimos nos madrigais de Gesualdo, nos quais às vezes não há esses movimentos harmônicos tradicionais. Os encadeamentos são muito inusitados, quase sem um centro tonal, sob certo aspecto. Há trechos em que o madrigal vai de um acorde, por exemplo, de dó maior pra um mi bemol menor. Então achei interessante trazer essa linguagem harmônica no primeiro movimento”.
O segundo movimento, Canto, é baseado numa melodia que lembra os cantos africanos antigos que João ouvia no candomblé e na umbanda. “É típico o modalismo do canto afro-brasileiro nessas cantigas de banzo. Tem esse sabor de saudade. Aqui aproveito o vocal do instrumento, com o violão apresentando o tema e a orquestra como um conjunto de vozes. Inclusive utilizo muito o glissando nas cordas, não como efeito, mas tentando imitar a voz”.
No terceiro movimento, Dança, João Luiz lança mão dos ritmos africanos típicos, “essa mudança métrica, combinação de três por quatro com sete por oito, pra dar essa ideia meio festiva, que são muito peculiares nos rituais afro-brasileiros”.
Já há alguns anos, o Acervo vem mostrando o trabalho magistral de Gabriele Leite, tanto por meio de artigo escrito por ela sobre o projeto Guri, quanto em live ao lado de Eduardo Gutteres e Octávio Delucchi, além de vídeos exclusivos lançados. Bolsista internacional pelo programa Magda Tagliaferro & Cultura Artística, Gabriele é mestra em violão clássico pela Manhattan School of Music. É uma das vencedoras do Lillian Fuchs Chamber Music Competition, em Nova York (2021). Em dezembro de 2020, seu nome entrou na lista Forbes Under 30, que “destaca os mais brilhantes empreendedores, criadores e game-changers brasileiros abaixo dos 30 anos”, segundo a Revista Forbes. Em 2019, foi semifinalista da Koblenze International Guitar Competition (Alemanha) e recebeu a menção de “Melhor Participação Brasileira” do evento.
João Luiz Rezende Lopes é um dos mais brilhantes nomes do violão brasileiro de sua geração. Doutor em performance, violonista, compositor e professor, foi duas vezes indicado ao Grammy Latino. Vencedor do Concurso Concert Artists Guild de 2006 como integrante do Brasil Guitar Duo, ao lado de Douglas Lora. João é diretor de música de câmara e chefe de estudos de violão no CUNY Hunter College e na Stony Brook University, ambas em Nova York.