Como habitar a enorme casa que o violonista e luthier Sérgio Abreu deixou pra nós
(Sérgio Abreu - novembro 2018 - crédito: Elisa Gaivota / Acervo Violão Brasileiro)
Por Luciano Morais*
(Especial para o Acervo Violão Brasileiro)
Estamos percebendo um sentimento comum entre colegas violonistas amantes do violão após a recente partida do violonista e luthier Sérgio Abreu (1948-2023). O que parecia ser uma dor individual em relação a ele se torna algo que reconhecemos em cada um com quem conversamos a respeito. Como se sua morte nos deixasse, novamente, órfãos. Para quem vamos agora telefonar às duas da madrugada sabendo que ali no outro lado da linha está aquela usina de vivência artística, uma pessoa produzindo instrumentos como uma extensão de sua visão artística que foi das mais impactantes já vistas?
Para quem vamos agora mostrar nossos discos, nossas ideias de arranjos, de interpretação? Quem vai apaziguar nossos ânimos diante de um problema técnico, chamando a atenção para outro, muito mais simples, que sequer tínhamos percebido? Quem vai nos dar uma opinião sobre nossas pesquisas, livros, composições? Ou nos aliviar do fetiche do instrumento sem acidentes, dizendo que “nada, isso é fácil de resolver, traz aqui que eu colo, que eu arrumo. Rachou onde? Quer o rastilho mais alto? Bom, pro som sair mais forte tem que usar o braço, né?” Quem vai nos lembrar agora de sermos simples?
(Paulo Fischer e Sérgio Abreu - Arquivo Ricardo Dias)
Em todo caso, precisamos fazer esse trabalho de luto. As carpideiras são as que trabalham no ofício de “carpir”, de capinar o terreno, de revirar a terra, de relatar a experiência. E nesse revirar sentimentos e reavaliar escolhas que fizemos nós arejamos o terreno para seguir adiante, mesmo que a vontade seja de abandonar tudo e morrer com ele. Afinal, o que vale a pena fazer agora? Mais uma homenagem? Mais uma autopromoção, mais uma obra in memoriam?
A soma de todos os vários relatos e homenagens tem um pouco desse pe(n)sar sobre nosso violão. E, pela forma como pensamos o violão nesses 40 anos passados desde que Sérgio Abreu largou a carreira de concertista, a pergunta que ficou nos norteando não foi “porque ele deixou os palcos?” mas sim “o que, afinal, nós conseguimos construir desde que ele se refugiou dessa fogueira de vaidades da indústria de concertos e gravações para o ateliê de luteria, onde ele poderia trabalhar mais harmonizado com a forma de viver a arte em que acreditava?”. Aprendemos o que com esse sinal?
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Ouvir, ouvir, ouvir. O que sempre me impressionou nos grandes músicos é a similaridade de método. Todos, sejam compositores, músicos práticos, teóricos, estetas ou luthiers: eles ouvem. Fazem do som em si o seu material de trabalho e o que eles ouviram os impede de seguir a arte como “a minha natureza, a minha linguagem, o meu jeito de fazer, o meu estilo”; o eu, eu, eu. Não, meu caro alecrim dourado, a arte não é produto de uma subjetividade. Ao contrário, a arte é o que constrói nossa subjetividade. A subjetividade é a incidência histórica de uma série de feitos que, uma vez ouvidos, não podem mais nos deixar em paz. “Agora eu vou te mostrar o violão que não me deixa dormir”. E lá estava o Hauser de 1930. E eram sempre Sérgio e quem o ouviu a não dormirem nunca mais.
(Duo Abreu)
Quantos de nós perderam o sono diante de algo que foi escutado? E diante de que esse sono se perdeu? Aí está a resposta pela qual Sérgio se recusou a ser o que queríamos que ele fosse.
Ouvir o som é o que mobiliza uma técnica possível, que é orientada para um resultado musical. Ponto. Aqui está nosso ofício e é por meio deste ofício que aprendemos a admirar, respeitar, amar e ter Sérgio Abreu como nossa estrela guia. O que mais me dói é que agora ele não pode mais se proteger e proteger sua vida, sua história e seus ideais do que nós desejaremos que ela seja.
Este violão, chamado erroneamente de “violão clássico” (porque é um violão, apenas) perdeu um defensor manso e prudente, generoso e persistente, que esperou 15, 20 anos até que suas caixinhas de abeto amadurecessem. Quando isso aconteceu, silenciaram todos os que acreditaram serem os seus violões uma sombra do que ele fez como violonista. Porque ele sabia que não se prepara uma peça para gravar e apresentar em um mês. Não se aprende a compor antes de escrever música por dez anos, não se sabe o potencial de um instrumento de abeto antes de uma década. Ele podia esperar. Sabia pelo quê estava esperando. E sabia porque escutou.
(Sérgio Abreu - crédito: Elisa Gaivota / Acervo Violão Brasileiro)
Diante disso, nosso problema hoje é grave. As salas de concerto estão vazias e, quando enchem, percebemos que era melhor que estivessem vazias mesmo; as escolas de música estão fechando; os canais do Youtube ainda despertam a crença de que se pode substituir uma universidade: dez anos não foram suficientes para percebermos que essa plataforma de treliça digital não nos leva muito longe – ou não teríamos ainda o problema das fake news, do terraplanismo político, científico, ideológico e cultural.
Os projetos sociais ainda compram lixo com rótulo de instrumentos musicais para desmusicalizar as pessoas e a educação musical privilegia ainda a pesquisa de ponta em detrimento da de base. Nossa arte, 40 anos depois que Sérgio deixou os palcos, ainda é elitista. Não foi isso que recebemos como lição de Sérgio. Para ele, bastava que o artista escutasse e fosse honesto. Para ele, Jacob do Bandolim era tão grande quanto Nelson Freire. Temperar uma quinta não era sinônimo de desafinar um intervalo, uma unha bem lixada não resolvia o problema do toque, um ensaio bem feito não dispensava o problema do amadurecimento sobre uma partitura.
(Sérgio Abreu - foto: Luciano Morais)
Para ele, só ler e interpretar não basta: é preciso ouvir um pouco de tudo e saber como se compõe e como se arranja. Esse tempo e essa forma não foram incorporados em nossos projetos na educação – musical ou não – de base. A própria palavra “projeto” é prostituída para nos referirmos à arte, porque um projeto é uma coisa que tem que ter um começo e um fim, objetivos, metas, resultados. E a arte não, ela não tem um começo e nem um fim. Ela começa muito antes de nos formarmos como artistas. De outro modo, nenhum artista poderia ter sido formado. A arte também é maior do que nossa vida, do que nossas metas e resultados... A arte não termina.
Mas ela pode ainda não ter começado.
Para Sérgio Abreu, sim, a arte havia começado. Não bastou ter sido filho e neto de dois professores de violão, ter tido boa formação musical, bons instrumentos à disposição. Embora isso tenha sido essencial para sua trajetória, ele não se prestou à capitalização do belo que converte tudo em indústria. Pela mesma razão pela qual ele entrou no ramo de concertista, saiu dele. Continuou acompanhando outros artistas, mas não da forma como esperávamos. Ele seguiu criando espaços de vivência artística, onde se aprende. Ele não criou espaços de experiências estéticas, onde se mostra. Ele fez artesanato, não fez indústria de notoriedades. Ele fez arte. Não fez cálculos.
(A soprano Maria Lúcia Godoy e Sérgio Abreu - arquivo particular Ricardo Dias)
Agora que Sérgio Abreu se foi, cabe a cada um de nós, dentro das suas possibilidades, fazer com que ela – a arte vivida, aquela à qual ele deu vida e pela qual ele deu sua vida – continue. Como faremos isso, é uma pergunta tão misteriosa quanto aquela outra pergunta, do porquê Sérgio Abreu abandonou os palcos. Por que ele não continuou? Na verdade, esse abandono foi ilusório e, portanto, o mistério não existe. Ele sempre continuou por aí ajudando a gente a abrir nossos ouvidos e nos ensinando a sermos simples e generosos. Ele nunca abandonou nada.
Sérgio nos ensinava que a música estava em outro lugar, não esse em que a indústria tenta nos fazer crer que ela está. Ele chegou mais perto da arte com essa forma de viver. E assim, talvez ele tenha deixado uma ideia de “como habitar agora essa enorme casa que ele deixou pra nós*”. Talvez uma forma de responder a essa pergunta, de como continuar sem ele, seja: do mesmo jeito que ele continuou conosco. Juntos. Escutando juntos, de modo simples, honesto e generoso.
Adeus, Sérgio. E obrigado por tudo o que você escutou enquanto esteve conosco.
* Comentário de Laura Cohen sobre o assunto.
(Luciano Morais)
*Luciano Morais, doutor em música pela USP, é violonista. Trabalhou por 5 anos na Unesp como professor substituto e faz parte do quadro da faculdade Mozarteum em São Paulo. Seu mestrado doutorado foram sobre Sérgio Abreu e sua contribuição para as práticas interpretativas.