Clarinetista Anat Cohen disputa Grammy ao lado de violonistas brasileiros
Por Alessandro Soares
“Moacir, não faça isso. Você vai ficar desacreditado!”, disse certa vez o compositor Durval Ferreira ao maestro Moacir Santos (1926-2006), que pensara em alugar o próprio carro para circular como táxi no Rio de Janeiro. Era 1967. Ele já gravara o lendário LP Coisas. Era premiado, adorado por artistas e atuava em rádio e TV, mas tinha contas e salários em atraso. Meses depois, mudou-se para os Estados Unidos. Seu nome no Brasil pernaneceu esquecido até 2001, quando surgiu o projeto Ouro Negro, do saxofonista Zé Nogueira e do violonista Mário Adnet.
De lá pra cá, o interesse pela obra de Moacir só aumenta. O maravilhoso CD Outra Coisa, da clarinetista israelense Anat Cohen com o violonista carioca Marcello Gonçalves - dedicado ao compsitor pernambucano – é um exemplo disso e concorre ao Grammy 2018 na categoria jazz latino. Anat também emplacou outro excelente disco na premiação americana: Rosa dos Ventos, com o Trio Brasileiro (do bandolinista brasiliense Dudu Maia, o violonista paulista Douglas Lora e o percussionista Alexandre Lora) na disputa pelo melhor álbum em World Music.
A festa da premiação ocorre neste domingo (28/01), no Madison Square Garden, em Nova Iorque. A torcida é grande. Mas independentemente do resultado, já uma vitória para o violão brasileiro e, em especial, para Anat, que produziu ambos os discos pelo selo Anzic Records, do qual é sócia. Embora a fama do Grammy seja a de prestigiar o lado mais comercial da indústria da música, Anat inscreveu seus discos pela internet, sem qualquer apoio ou lobby. Clique na capa e ouça faixas selecionadas do CD Outra Coisa:
Outra Coisa
Gravado em julho de 2016, Outra Coisa nasceu de uma ideia de Marcello Gonçalves em transpor para apenas um violão 7 cordas a orquestração de Moacir Santos. O resultado saiu impecável, bastante violonístico. “Baden Powell foi o primeiro a gravar a música de Moacir, que era seu professor. Por sinal, os afro-sambas surgiram dos exercícios que o Baden fazia com a aulas do maestro”, destaca Gonçalves, ao defender que a relação das peças Coisas tem uma relação maior com violão do que se imagina.
Para quem conhece a orquestra de Moacir, impressiona a maneira como Marcello reduziu as grades num sete cordas, mantendo riqueza de vozes e sutilezas. Sem falar nos graves do violonista carioca, de uma intensidade, precisão e elegância não visto em outros instrumentista de sete cordas. Ele parece ter demorado pelo menos meia década buscando o timbre singular daqueles bordões. Anat, reconhecida há tempos entre as melhores do mundo em seu instrumento, traduz uma nova maneira de se ouvir a obra do grande maestro.
“Para os ouvidos brasileiros, é certamente um disco da nossa música, assim como o estrangeiro percebe bem o quanto aquele som também é jazz. E também é música africana, pela riqueza de ritmos. Moacir Santos é isso tudo, na verdade. E a Anat fez um trabalho fantástico”, ressalta Gonçalves.
Em entrevista via Whatsapp, Anat é só elogios para o violão de Marcello Gonçalves. “Além do som incrível, tocando com tanta delicadeza e bom gosto, Marcello deixou um espaço musical tão bonito pra eu fazer a minha parte, solar junto e improvisar. Foi uma maneira muito boa de apreender a música do Moacir, que até então eu desconhecia. É uma música de raízes brasileiras, com elemento jazzísticos, por haver espaço para improvisar e melodias internas”.
A intimidade da clarinetista com a música brasileira é de longa data. Por volta de 2000 ela já frequentava rodas de choro do Rio de Janeiro. Em 2012 participou do CD De Onde Vem o Baião, de Marcello Gonçalves e a saxofonista Daniela Spielmann. Três anos depois, Anat também participou do disco Parceira, da cantora espanhola Irene Atienza com Douglas Lora. E em 2016, no CD Até Pensei que Fosse Minha, do cantor português Antônio Zambujo – com reituras sobre a música de Chico Buarque, Marcello Gonçalves dividiu as faixas com Anat Cohen e eles integraram a banda de Zambujo em turnê. O disco foi indicado ao Grammy Latino 2017. Clique na capa e ouça faixas selecionadas do CD Rosa dos Ventos:
Rosa dos Ventos
O álbum de Anat com o Trio Brasileiro, por sua vez, foi gestado em cinco dias na varanda da casa de Dudu Maia, em Brasília, onde funciona o estúdio Casa do Som, em dezembro de 2016. “Cada um nós quatro mostramos três músicas e a gente aprendia tudo aqui. Íamos tocando e, euando o tema ficava no ponto, a gente gravava, tocando ao vivo, como costumamos fazer. Depois fizemos alguns overdubs complementares”, recorda Maia.
Para divulgar o disco, Anat e o Trio tocaram em cidades dos Estados Unidos, França, Alemanha, Itália e República Tcheca. No final do ano passado, Rosa dos Ventos foi escolhido pela prestigiada Downbeat Magazine entre os 20 melhores álbuns de Jazz de 2017. “A gente sentia que tinha material especial em mãos com nossa música”, diz o bandolinista. O vídeo Choro Pesado, que integra o CD, filmado durante a temporada de gravações na tal varanda, rendeu mais de 1 milhão de visualizações no Facebook.
O primeiro trabalho de Anat Cohen com o Trio Brasileiro, Alegria da Casa, foi lançado em 2015, com repertório que mescla peças autorais e clássicos do choro, como Feia e Santa Morena, de Jacob do Bandolim. Já o segundo disco, só com obras dos quatro, une os diferentes estilos de compor e de tocar de cada um. “Compus ‘Rosa dos Ventos’, que traduz as várias direções da música e o quanto o violão brasileiro incorpora tanto o jazz (bem presente na Anat), quanto o lado etnomusical (do meu irmão Alexandre) e as coisas mais brasileiras (mais presentes nas minhas criações e do Dudu)”, descreve Douglas Lora.
Douglas acredita que a identidade da música brasileira é justamente a de ser fruto da mistura de vários sons e estilos, sendo o violão de nylon, tanto de 6 quanto de 7 cordas, talvez o maior representante dessa identidade. O disco ilustra bem essa versatilidade, com o violão, que é camaleônico por natureza, segundo Lora, atuando em várias frentes sem perder identidade. Há toda uma sutileza, interação entre instrumentos e gêneros, tendo o choro como origem de tudo, e o papel do violão abraça todo mundo, dando suporte harmônico, ritmico e melódico. De fato, o Trio Brasileiro prova que um grupo de choro pode explorar novas texturas sonoras e dialogar com baião, flamenco, afoxé, maracatu e jazz.
Amigos queridos
Com rara intimidade com o idioma português e a linguagem do choro, com domínio pleno e invejável, Anat destaca a forte afinidade com os integrantes do Trio Brasileiro, citados mais de uma vez como amigos queridos. Questionada sobre o violão de Douglas, enfatiza: “é dos melhores violonistas que conheci na vida. Tem um som maravilhoso e pode fazer o que quiser: música clássica, rock n’ roll, com uma intensão muito clara, sempre”. Assim, graças a Anat Cohen, o violão brasileiro dá seu recado na premiação americana. E, de fato, o destino não reservou a Moacir Santos a profissão de taxista.