André Siqueira grava obras de Toninho Ferragutti transcritas para o violão
(André Siqueira e Toninho Ferragutti / crédito: Valéria Felix )
Por Elcylene Leocádio
O que pode nascer quando um violão visita uma sanfona? A pergunta, feita pela cantora e compositora Déa Trancoso, nos leva a imaginar o que vem por aí, por meio das mãos do violonista André Siqueira, com o CD Da Outra Margem, no qual interpreta obras de Toninho Ferragutti, que ele transcreveu, ou melhor, traduziu, para o violão. Quem conhece os dois artistas vai concordar com Déa Trancoso, quando ela responde à sua pergunta afirmando que “esse encontro vai ser um eita atrás de eita”. Quem não os conhece, vai concordar quando ouvir o CD que está prestes a sair do forno, com uma bela capa da artista plástica Cinthia Camargo.
Para realizar o projeto, André lançou a campanha de financiamento coletivo Da outra margem na plataforma Kickante, que encerrava em 21 de março, mas foi prorrogada até 04 de abril. As recompensas atendem a diversos interesses do público que gosta de música e incluem: o álbum autografado, partituras, workshops, cursos sobre improviso ou arranjo e até recitais exclusivos. A campanha já alcançou mais de 85% da meta de R$ 20 mil.
Motivação da visita
Nas palavras de André Siqueira, a obra de Toninho Ferragutti apresenta um rico colorido e nos conduz de modo apaixonante, seja pelo virtuosismo, seja pelo lirismo que apresenta em suas belas melodias. Da Outra Margem é sobre a busca de trazer para o violão essa paleta incrível de expressividade que a sanfona apresenta. “Esse trabalho vem sendo gestado com muito carinho e tem como um dos objetivos trazer um novo olhar sobre as composições de Ferragutti a partir de minhas releituras ao violão e violão barítono, tendo a alegria de contar com a participação do próprio compositor em quatro das faixas do álbum”.
Aos 20 anos de idade, já apaixonado por música e sabendo que seria este o seu caminho de vida, André ouviu Ferragutti tocar pela primeira vez e ficou impactado com a “concisão e elegância com que ele tratava a música instrumental brasileira”. Poder tocar essas composições 25 anos depois, continua marcando o violonista, compositor, arranjador e multi-instrumentista, que vem cumprindo brilhantemente o seu destino.
Em entrevista para o Acervo, André nos diz que o que parecia estar guardado, inconsciente, ganhou outra dimensão quando a música veio para o instrumento, quando veio para as suas mãos. Dito de outro modo, quando a sanfona chega no violão, quando a música escrita por Ferragutti chega na ponta dos seus dedos.
Comentando o apreço que tem pela improvisação musical, ele diz que não a vê como um produto, mas como um método, um modo de estar no mundo, no qual se estuda possibilidades. E com base nesse entendimento ele afirma que ao tocar as músicas de Ferragutti ao violão, chega a pensar que poderiam ser composições suas, pois “harmonicamente eu faria as mesmas escolhas”. E continua: “Nem sempre a gente sabe por que estuda alguma coisa. Mas hoje eu sinto como se tivesse estudado a vida inteira para poder tocar a música de Toninho de forma prazerosa. Tecnicamente tem coisas bem difíceis, mas encaixam na minha mão e isso é comum quando vem de outro violão, mas não de uma sanfona”.
A decisão de gravar
Gravar este CD foi um processo natural nutrido pelo interesse de André em relação à música instrumental de Ferragutti para sanfona, do seu trabalho de transcrição dessas obras para violão e violão barítono e dos shows que eles já fizeram juntos. Para André “não foi uma decisão muito cerebral. Foi algo que veio do coração, pois além de fazer uma música maravilhosa e ser um músico incrível, Toninho é um amigo, um ser humano generoso, bonito, íntegro. E eu valorizo isso porque acredito que a música traz dentro dela o artista que a criou”.
Comentando a parceria, Ferragutti fala do amigo André, da admiração pelo músico que ele é, pela inquietude que ele tem e diz estar muito feliz por ser escolhido como compositor para esse disco. “Eu penso que é algo muito original um músico gravar outro músico que não é consagrado, como é o meu caso. É um tipo de pensamento, de proposta, que poderia ser mais comum. Vendo André tocar minhas músicas, além de ficar muito bonito, fica muito natural. Isso me dá certeza de seguir compondo, de seguir nessa carreira de músico instrumentista e viver de minhas composições. Eu fico muito satisfeito, muito honrado, principalmente nesse momento tão difícil de pandemia, em que a gente precisa tanto um do outro.
O sanfoneiro e o violonista
(Toninho Ferragutti / crédito: Gal Oppido)
Ferragutti pode não se sentir um músico consagrado, mas o reconhecimento da importância de sua obra é inegável. Segundo a jornalista Maria Luiza Kfouri “Toninho Ferragutti traz em seu acordeom a síntese de todos os grandes acordeonistas brasileiros e, ao mesmo tempo, é um acordeonista singular, com personalidade e sons únicos, que praticamente reinventam o instrumento”.
Vê-lo tocar é um deleite. E o que dizer de vê-lo tocar sozinho, sem ninguém à sua volta, em plena sintonia com o seu instrumento? Sou testemunha de um desses momentos, algo de rara beleza que tive o prazer de presenciar no palco do Sesc Santana, em 2018. Durante os ensaios para o show de homenagem a Dino 7 Cordas, dirigido por Alessandro Soares, os violonistas ensaiavam no camarim, e no palco, atrás das cortinas, sozinho, estava Ferragutti tocando baixinho. Uma imagem de intimidade e plenitude comoventes. Me aproximei com cuidado para não ser vista, não atrapalhar, não interromper e fiquei quietinha escutando. Foi um dos momentos mais belos que já presenciei, do músico entregue à sua música.
(André Siqueira / crédito: Íris Zanetti)
Perguntado o que pensa sobre o trabalho de André Siqueira, o também violonista, compositor, arranjador e professor Conrado Paulino, se desmancha em elogios em um áudio de 15 minutos, que bem poderia ser o mote para uma pesquisa sobre a carreira deste músico que ele sintetiza como notável. No brevíssimo resumo que faço a seguir, que não faz jus ao conteúdo consistente de seu depoimento, mesclando a linguagem técnica do “violês” com a linguagem do dia a dia, para que eu, uma não iniciada, pudesse entender, Conrado nos diz:
“A minha geração se dividia entre quem tocava música erudita ou popular. Se para tocar erudito era preciso treinamento rigoroso, tocar popular exigia um molejo que a formação erudita não oferecia. Era preciso vivência, colocar a mão na massa. Hoje, isso vem mudando. E diversos violonistas de gerações mais novas passaram a transitar muito bem entre essas duas praias. André Siqueira é um deles. É um acadêmico, usa recursos do violão erudito com muita propriedade e, ao mesmo tempo, toca popular com um molejo fantástico. Intérprete e multi-instrumentista, ele toca violão, violão barítono, viola, flauta, trumpete e bandolim. Como se fosse pouco, arranja e compõe com uma linguagem nova, moderna, antenada com o que acontece hoje no mundo do violão. É um músico genial e está entre os melhores de sua geração.
Sim, Déa Trancoso tem razão. O encontro da sanfona de Toninho Ferragutti com o violão de André Siqueira vai ser um eita, eita, eita!