A brilhante trajetória biográfica e artística de Julian Bream
Por Gilson Antunes
(Especial para o Acervo Violão Brasileiro)
A brilhante trajetória de Julian Bream, morto há uma semana (em 14 de agosto), perdurou a vida inteira. Tanto como violonista profissional, quanto como incentivador de novos talentos. E mais ainda pelo importante papel que teve em ampliar o repertório para o instrumento. Sua rica biografia começa em 15 de julho de 1933, quando nasceu em Battersea, Londres, bairro imortalizado na capa do disco Animals, de Pink Floyd, que traz a imagem da usina hidrelétrica, uma constante na infância.
Desde cedo teve apoio do pai, violonista amador fanático por jazz, que lhe deu as primeiras lições no instrumento. Com a mãe – uma mulher muito bonita, segundo o próprio Bream – teve relação mais distante.
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Aos 11 anos, Bream faz sua estreia em uma audição da Philharmonic Society of Guitarists, tocando a Danse Nord, de Mauro Giuliani, Andante (Diabelli) e uma transcrição de Salut d’Amour (Elgar). Na ocasião, entra em contato com o presidente da Sociedade, Boris Perrot (1882-1958), imigrante russo, que passa a lhe dar aulas. Um ano depois Bream já estava estudando com Desmond Dupré, que dominava uma técnica mais “moderna”, ensinando pelo método de Paschoal Roch, discípulo de Tarrega.
Segovia
Em 1947 ocorrem eventos marcantes em sua trajetória profissional. Em fevereiro, aos 13 anos, Julian Bream estreia como solista em recital na Cheltenham Art Gallery, tocando obras originais de Shand, Paganini, Coste, Sor, Usher e transcrições de obras de Schumann, Bach, Granados e Albéniz. No final do ano, ele encontra Andres Segovia, que fazia uma pequena turnê na Inglaterra após um longo período ausente em decorrência da II Guerra Mundial.
Em Cambridge, Bream assiste ao solo do Concerto em Ré de Castelnuovo-Tedesco pelo mestre espanhol. A apresentação muda a sua vida. Em 18 de dezembro, ele se apresenta para Segovia pela primeira vez. Toca o Estudo em Si bemol de Fernando Sor e recebe informações preciosas sobre técnica e interpretação.
Em 1948 a carreira de Bream deslancha. Ele faz o seu primeiro concerto para violão (de Ernest Shand) em redução para violão e piano. Mostra pela primeira vez sua sonoridade no filme Sarabande for Dead Lovers (o autor da trilha sonora, Alan Rawsthorne, dedicou sua última música, Elegy, a Julian Bream em, 1971) e participa de um programa radiofônico bastante influente da BBC, Nocturne, sobre instrumentos de cordas. Esses fatos, somado aos recitais, vão colocando Julian Bream entre os principais nomes da nova geração de músicos ingleses.
Nesse período tem início seus estudos formais no Royal College of Music, de piano e composição (por não haver a cadeira de violão nessa instituição), com bolsa integral. Uma curiosidade é que após essa notícia, a Academia Brasileira de Violão, fundada por Isaías Sávio, enviou uma carta assinada por 36 violonistas agradecendo a George Dyson, então presidente do Royal College, pelo apoio a Julian Bream.
Alaúde
Também nessa época, Julian Bream começa a se interessar pelo alaúde e se torna um dos principais difusores do instrumento no século 20, influenciando uma enormidade de alaudistas em todo o mundo. Pode-se dizer que o alaúde não seria o mesmo se Bream não tivesse ajudado a resgatá-lo e divulgá-lo. Seu primeiro recital com esse instrumento se deu em 1950 no Cowdray Hall, em Londres, patrocinado pela Guitar Society of London.
Com alguns dos principais nomes da interpretação histórica, incluindo o seu antigo professor Desmond Dupré, ele funda o influente Julian Bream Consort, com o qual faz uma série extraordinária de gravações e participa de programas televisivos essenciais para a divulgação da música histórica após a II Guerra Mundial. Além isso, com o alaúde, Bream realiza gravações fundamentais como solista, sendo a primeira em 1956 e a última em 1989.
Wigmore Hall
Em 1950, Bream interpreta o Concerto de Kohaut com alunos do Royal College. No ano seguinte, em 26 de novembro, faz o histórico debut no Wigmore Hall, em Londres, meca das apresentações dos principais músicos clássicos. Naquela noite ele, aos 18 anos, interpreta pela primeira vez o Concerto de Aranjuez, de Joaquin Rodrigo, e também participa como camerista no Quarteto de Matiegka. Infelizmente seu pai havia falecido poucas semanas antes e não pode assistir ao triunfo do filho. Esse recital, aliás, tem como última obra o Choros n.1 de Heitor Villa-Lobos. O próprio Villa diria mais tarde que Bream era um dos seus intérpretes favoritos.
Algo que poderia ter atrapalhado a carreira de Julian Bream é o fato de ele ter que servir (obrigatoriamente) o exército por dois anos durante essa época, mas Bream aproveita para tocar violão na banda de música (por mais incrível que possa parecer). Já em 1954, na nova edição do maior dicionário musical em todo o mundo, o Grove’s Dictionary of Music, Julian Bream - com apenas 21 anos de idade - entra como verbete.
Discografia
Sua gloriosa carreira discográfica começa em 1955, no pequeno selo Westminster, cujos raros LPs costumam custar uma fortuna (essas gravações não constam na caixa de 40 CDs da RCA lançada em 2013). A primeira gravação, aliás, não é com violão, mas sim com alaúde, acompanhando o tenor Peter Pears em canções elizabetanas para canto e alaúde.
No ano seguinte ele fez duas gravações na Alemanha, uma com obras de Sor, Turina e Falla e outra com peças de Villa-Lobos (os 5 Prelúdios) e Torroba. Mais dois lançamentos históricos se seguiram em 1957, com obras de Bach (ao violão) e Dowland (ao alaúde), obtendo críticas excelentes, inclusive da prestigiada revista Gramophone.
A partir de 1960 Bream entrou em estúdio regularmente pela RCA Victor até 1989. Após esse período ele teve mais seis lançamentos pela EMI entre 1993 e 2005. Todos esses discos estão entre as principais já realizadas por qualquer violonista, sendo fonte de inspiração para várias gerações de instrumentistas.
É impossível citar algum fonograma como sendo o principal, dada a qualidade excepcional de todos os registros. Mas um olhar cuidadoso pode ser dado aos três discos de música moderna: 20th Century Guitar Music (1965) que inclui a primeira versão do Nocturnal de Benjamin Britten; Julian Bream 70’s (1973), com obras de Bennett, Rawsthorne, Walton e Berkeley; e Dedication (1981), com peças de Bennet, Walton, Maxwell Davies e Henze. Em geral, cada pessoa tem sua gravação favorita desse violonista, podendo variar de John Dowland a música espanhola, passando por todos os períodos da história da música desde o renascimento.
Atuação didática
Bream iniciou as atividades como professor em 1957, durante o curso de verão em Dartington, Devon, onde grandes nomes da música eram também professores. Na mesma época ele participou da trilha sonora de outro filme clássico inglês, Chase a Crooked Shadow, escritar por Matyas Seiber (compositor que Bream fez posteriormente uma antológica gravação).
A arte de Bream como didata pode ser apreciada também na série de masterclasses televisionadas pela BBC em 1978, disponíveis no Youtube (uma delas é dedicada a Prelúdios de Villa-Lobos). Turíbio Santos conta que participou de alguns masterclasses do violonista britânico no início da década de 1960 e Fabio Zanon presenciou masterclasses como aluno da Royal Academy no início da década de 1990. Nessa instituição, outros violonistas também foram reconhecidos por Bream, chegando a vencer o Julian Bream Prize (caso dos paranaenses Fabrício Mattos em 2009 e Fabio Lima em 2012). Além dos alunos, Bream também dedicou a vida a publicar transcrições, arranjos e digitações de obras por editoras como Schott, Chester, Ariel e Faber & Faber.
Música de Câmara
Bream teve como principal parceiro camerístico o tenor Peter Pears, com quem realizou antológicas gravações de música renascentista inglesa, além de música moderna de autores como Benjamin Britten, William Walton, Matyas Seiber e Peter Racine Fricker. Além do já citado Julian Bream Consort, devemos destacar a série de Lps de Bream em duo com John Williams na década de 1970. Entre outros parceiros musicais estão o cravista George Malcolm e a atriz Peggy Ashcroft (vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante em 1985 por sua atuação no filme Passagem para a Índia).
(Michel Lewin, Fábio Lima e Julian Bream)
Encomenda de obras
Para muitos, o principal papel de Julian Bream foi o de encomendar obras para grandes compositores do século 20. Se Segovia possui crédito pelo aumento do repertório através de autores não-violonistas de diversos países, Bream o possui especialmente através de compositores ingleses de uma estética mais contemporânea (não desenvolvida por Segovia por questões de preferência particular), além de nomes como Leo Brouwer (Cuba), Toru Takemitsu (Japão) e Hans Werner Henze (Alemanha).
Desse modo, William Walton (5 Bagatelas), Richard Rodney Bennett (5 Impromptus, Sonata, Concerto), Peter Maxwell Davies (Hill Runes, Sonata), Lennox Berkeley (Concerto, Sonatina, Tema com Variações), Tom Eastwood (Ballade-Phantasy), Michael Tippett (The Blue Guitar) e Malcolm Arnold (Serenata, Concerto, Fantasia), entre outros.
Mais recentemente, após a aposentadoria nos palcos, Bream continuou seu legado didático com o The Julian Bream Trust, criado em 2008, pelo qual ele ajudou jovens violonistas com bolsas de estudos em três grandes instituições inglesas e, especialmente, pela continuidade do comissionamento de novas obras para violão. Com isso, excelentes músicas escritas recentemente por autores como Harrison Birtwistle (Construction with Guitar Player, 2013), Leo Brouwer (Sonata n.5 Ars Combinatoria, 2013), Julian Anderson (Catalan Peasant with Guitar, 2015) e Ollie Mustonen (Sonata n.2, 2017).
No Brasil
Bream esteve apenas uma vez no Brasil para recital, em 1979, no Rio de Janeiro, atraindo caravanas de violonistas de todo o país à capital fluminense para o evento. Ele gravou toda a obra conhecida até então de Villa-Lobos (incluindo uma excelente gravação do Concerto para Violão e Pequena Orquestra) e foi agraciado pela viúva Arminda Villa-Lobos através do Museu Villa-Lobos. Já em 2013, Julian Bream foi o homenageado da última edição do Festival Leo Brouwer, ocorrida em São Paulo, ocasião na qual vieram ao Brasil pela primeira vez os violonistas ingleses Jonathan Leathwood e Stephen Goss.
Mais recentemente o violonista, professor e crítico musical Sidney Molina (membro fundador do Quaternaglia Guitar Quartet) escreveu uma tese de doutorado a respeito da discografia de Bream, culminando com uma série de programas de rádio com gravações do violonista. Ainda na academia, Ericsson Castro defendeu sua dissertação de mestrado na Unicamp a respeito do Julian Bream Prize, através do comissionamento da obra Construction with Guitar Player de Harrison Birtwistle.
Aposentadoria
Julian Bream se aposentou dos palcos oficialmente no dia 06 de maio de 2002, em um recital em Norwich, Inglaterra. Após esse período ele chegou a tocar ocasionalmente em pequenos recitais locais apenas como diversão pessoal, período esse interrompido tristemente em 2011 (aos 78 anos) após um acidente com um cachorro de um vizinho. Ele disse que não havia nenhum problema em relação a não poder tocar mais o instrumento, mas que ele sentia muito pelo fato de ser um músico melhor do que aos 70 anos, mas que não teria mais como provar.
Aos 87 anos recém completados, Julian Bream morreu em 14 de agosto em sua residência no interior da Inglaterra. Segundo o jornal The Guardian, Julian Bream faleceu “em paz” em sua residência em Wiltshire, interior da Inglaterra.
(Fabrício Matos e Julian Bream)
Para ler:
Em português:
-Castro, Ericsson. Criatividade Colaborativa e Estratégias de Estudo na Obra “Construction with Guitar Player” de Harrison Birtwistle. Dissertação de mestrado. Unicamp.
-Molina, Sidney. O Violão na Era do Disco. Interpretação e Desleitura na Arte de Julian Bream. São Paulo. Tese de doutorado.
Em inglês:
Button, Stuart W. Julian Bream, The Foundations of a Musical Career. Aldershot: Scolar Press, 1997.
-Palmer, Tony. Julian Bream – A Life on the Road. London. Macdonald & Co. 1982.
-Wade, Graham. The Art of Julian Bream. Ashley Mark Publishing Company. 2008.
Para ouvir:
-Julian Bream: Classical Guitar Anthology: The Complete RCA Album Collection (40 CDs, 2 DVDs e livro com 96 páginas)
-Sidney Molina: O Violão na Era do Disco: A Arte de Julian Bream. Série de programas radiofônicos baseados em sua tese de doutorado, dedicados a Julian Bream.
-Luciano Morais: #160 – O Legado de Julian Bream. Programa da série Conversa de Violonista.
Para ver:
Oficial:
-A Life in the Country (DVD inserido na caixa de CDs Classical Guitar Anthology)
-Guitarra! A Musical Journey through Spain (Programa produzido pela Granada Television em 1982, lançado em VHS)
-My Life in Music (DVD)