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A abordagem pedagógico-musical humanista de Hans-Joachim Koellreutter

Postado em Artigos em 09/09/2022

A abordagem pedagógico-musical humanista de Hans-Joachim Koellreutter - Foto: Hans-Joachim Koellreutter

Por Fábio Carrilho (*)

Grande personalidade da música brasileira do Século 20, o compositor, professor e ensaísta alemão Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005) deixou sua marca no campo estético ao difundir no país sistemas musicais como o dodecafônico, o serial e a música aleatória. O músico, que nasceu em 2 de setembro de 1915 em Freiburg (Alemanha) e desembarcou no Rio de Janeiro em 1937 fugindo do nazismo, balançou as estruturas da música de concerto nacional na década seguinte ao liderar a versão local do movimento Música Viva, correspondente à segunda fase do modernismo musical brasileiro e contrária ao nacionalismo vigente.

Desta época, é célebre o feroz manifesto do compositor Camargo Guarnieri (1907,1993), alertando sobre os "riscos" do dodecafonismo e de outras técnicas modernas à cultura nacional. A faceta pedagógica, tão ou mais importante na carreira de Koellreutter quanto seu trabalho enquanto compositor, quase sempre é lembrada por motivos institucionais em que esteve envolvido, como a criação, nas décadas de 1950 e 1960, dos Seminários Internacionais de Música em Salvador, dando origem à futura Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, e os Cursos Internacionais de Férias Pró-Arte em Teresópolis.

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Ou, ainda, pela sua lista de notáveis ex-alunos, como Cláudio Santoro e Guerra-Peixe, da fase Música Viva; o  jovem Tom Jobim, de quem Koellreutter foi professor de piano na escola Brasileiro de Almeida, dirigida pela mãe do bossanovista no Rio de Janeiro; os tropicalistas Tom Zé e Caetano Veloso, os maestros Rogério Duprat, Júlio Medaglia e a educadora Lydia Ortélio, dos Seminários Internacionais em Salvador, entre tantos outros artistas.

Apesar do reconhecimento pelos seus feitos na área didática, a abordagem pedagógica koellrutteriana ainda carece de um maior aprofundamento de estudo e aplicação prática por parte da classe docente. Talvez por incompreensão, desconhecimento ou pela associação de seu trabalho pedagógico com o seu trabalho artístico, ainda é comum ouvir professores de música, inclusive experientes, referindo-se a Koellreutter de maneira rasa como um "professor de música contemporânea", algo quase sempre acompanhado de uma generosa dose de preconceito.

Ignora-se aí não apenas o domínio que tinha de estilos de outras épocas como a desenvoltura com que ministrava aulas variadas - composição, regência, harmonia, contraponto e estética - mas também o real alcance de sua abordagem pedagógica, a qual serve ao ensino musical independente de estilo, do estágio em que os alunos se encontram ou da disciplina a ser ministrada. Se em seus jogos musicais o professor fazia uso de materiais sonoros inusitados ou de procedimentos próximos aos utilizados na música contemporânea, como a não utilização do tempo métrico e as explorações timbrísticas, os motivos não tinham uma finalidade meramente estética de se ensinar "música contemporânea", mas de se propiciar o fazer e o pensar musical de maneira democrática, sem a demanda, por exemplo, de pré-requisitos técnicos dos participantes.

A abordagem pedagógico-musical humanista de Hans-Joachim Koellreutter - Foto: Hans-Joachim Koellreutter

Fato é que a visão humanista de Koellreutter no campo da educação musical, assim como o estímulo às liberdades expressivas e criativas, elementos lembrados com entusiasmo por seus ex-alunos, estão assentados em bases conceituais que englobam não apenas a vivência musical do professor. Áreas do conhecimento como a Psicologia, a Filosofia e a Física, assim como o contato de Koellreutter com culturas orientais, especialmente da Índia e do Japão, países onde o músico morou por alguns períodos de sua vida, fazem parte do rol de influências que permeiam seu modo de pensar música e o seu respectivo ensino-aprendizagem.   

Seus procedimentos pedagógicos e a sua visão sobre música, de modo geral, encontram-se documentados em textos esparsos publicados pelo próprio Koellreutter ao longo de sua vida e, desde a virada para os anos 2000, de maneira mais minuciosa em trabalhos de seus ex-colaboradores, como o educador Carlos Kater e, principalmente, a educadora Teca Alencar de Brito. Ex-professora do Departamento de Música da Universidade de São Paulo, Brito produziu os títulos Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical e Hans-Joachim Koellreutter: ideias de mundo, de música e de educação, os quais constituem o mais amplo estudo sobre os pilares da abordagem pedagógica koellreutteriana, resumidos a seguir.

O ser humano como objetivo da educação musical

Apesar de grande parte de sua experiência pessoal enquanto professor estar ligada à formação de músicos, Koellreutter, no decorrer de sua vida, redimensionou sua visão sobre o papel da educação musical. Por meio da ampliação e do enriquecimento de sua experiência pessoal, conferiu-lhe funções que transcendem os limites da formação musical, passando a falar em educação musical funcional. Nesses termos, costumava dizer que a música seria, em primeiro lugar, uma contribuição para o alargamento da consciência e para a modificação da sociedade e dos indivíduos em seus tempos, ressaltando, assim, sua função social.

A “educação para a música” e a “educação pela música” eram princípios norteadores da conduta pedagógica de Koellreutter, que via a educação como um jogo em que as qualidades da música influenciam as qualidades humanas, e vice-versa. Tal tipo de educação musical não estaria orientado exclusivamente para a profissionalização de musicistas, apesar de abarcar esta possibilidade, na medida em que, segundo o professor, teria a finalidade de desenvolver faculdades indispensáveis ao profissional de qualquer área, como a percepção, a comunicação, a autodisciplina, o trabalho em equipe, o discernimento, a análise e a síntese, o desembaraço, a autoconfiança, a criatividade, o senso crítico, a responsabilidade, a sensibilidade de valores qualitativos, a memória e o desenvolvimento do processo de conscientização do todo, entre tantas outras.

Sendo assim, a ação pedagógica koellreutteriana extrapola a questão envolvendo a aquisição de técnicas e procedimentos para o fazer musical, não tendo como objetivo primeiro a formação de músicos profissionais. Visando a construção de novos paradigmas para o exercício da cidadania, o professor sempre procurou promover situações de debate e de estímulo ao pensar, integrando vivências musicais e humanas. Entre os muitos estudiosos que possuem pontos de contato com as propostas de Koellreutter, Teca Alencar de Brito aponta os autores Paulo Freire, Edgar Morin, Ubiratan D'ambrósio e Maria Cândida Moraes. 

 Educar é conscientizar

"O professor não ensina nada, conscientiza", dizia sempre Koellreutter. Nesse emblemático discurso, o músico associa as aquisições de competências aos seus respectivos processos de conscientização, o que difere da mera aprendizagem no sentido tradicional de "instrução". A conscientização implicaria desenvolver simultaneamente a vivência e o processo intelectual, o pensar e o agir, visando a busca pela compreensão do inter-relacionamento constante dos sistemas envolvidos em determinado processo, como em uma espécie de ato criativo de integração. Segundo ele, a comparação seria a melhor estratégia para se promover o processo de conscientização.

A abordagem pedagógico-musical humanista de Hans-Joachim Koellreutter - Foto: Hans-Joachim Koellreutter

Influenciado pela fenomenologia, Koellreutter assumia que o nível de consciência dos indivíduos era determinante não apenas em seus processos de aprendizagem, mas na construção de suas respectivas visões de mundo. Neste pensamento, a maneira como o ser humano vive, experimenta, imagina e vê o mundo seria função do nível e da maneira como a sua consciência estaria estruturada.

O professor considerava que todas as formas de ação e representação, incluídas a produção musical de cada indivíduo, de cada cultura ou de cada estágio histórico-social, estariam sintonizadas com o nível de consciência dos agentes envolvidos. Questões referentes à estética e aos estilos musicais, por exemplo, estariam diretamente ligadas ao nível de consciência e às características do pensar dos criadores e do ambiente. "Todo estilo musical define uma situação histórica", costumava dizer.

A integração do pensar e do agir, bem como a existência de uma unidade corpo-mente em inter-relação com o ambiente foram apontadas por Koellreutter de modo a superar paradigmas dualistas. Para tanto, desenvolveu o conceito de nível de consciência arracional, o qual atuaria ao lado dos níveis racional e irracional. Se o pensamento intuitivo corresponde ao nível irracional e a especulação científica equivale ao racional, ao pensamento arracional caberia uma espécie de transcendência de ambos.

Currículo aberto e modelo de ensino circular

A abordagem pedagógico-musical humanista de Hans-Joachim Koellreutter - Foto: Hans-Joachim Koellreutter

São diversos os pontos de contato entre a ação pedagógica de Koellreutter e a chamada "pedagogia construtivista", a qual encontra bastante espaço no ensino regular, servindo de inspiração a projetos pedagógicos que visam um tipo de ensino mais personalizado, criativo e respeitoso quanto aos interesses dos alunos. No ensino musical, tal abordagem é pouco praticada, pelo baixo interesse da classe docente e, principalmente, da direção das instituições de ensino em relação a temas envolvendo o questionamento do arcaico modelo de ensino conservatorial.

"Meu método é não ter um método", dizia Koellreutter sobre a necessidade de se trabalhar com um currículo aberto. Para o professor, o método ou o currículo fechado seria algo limitador e impositivo, sendo necessário a abertura para que se possa transcender, transgredir e ir além. Era radicalmente contra, por exemplo, currículos que determinavam previamente os conteúdos a serem transmitidos sem a avaliação docente criteriosa do que seria realmente importante ser ensinado em determinados contextos.

"Aprender a apreender do aluno o que ensinar" é outra frase marcante de Koellreutter, procedimento que era visto por ele como uma espécie de técnica docente a ser trabalhada por meios da observação e do respeito ao universo cultural, aos conhecimentos prévios, às necessidades e aos interesses dos alunos. Dentre os recursos utilizados em aulas, a participação ativa, a criação, o debate, a elaboração de hipóteses, a análise crítica e o questionamento eram recorrentes nas situações de ensino-aprendizagem por ele mediadas.

A abordagem pedagógico-musical humanista de Hans-Joachim Koellreutter - Foto: Hans-Joachim Koellreutter

Sobre o aspecto dinâmico das aulas, Koellreutter reforçava a necessidade dos docentes estarem sempre preparados para perceber e atender as necessidades de seus alunos. "A melhor hora para apresentar um conceito ou ensinar algo novo é aquela em que o aluno quer saber", costumava dizer, ressaltando que os professores não deveriam ensinar nada que os alunos pudessem resolver sozinho. O tempo de aula, segundo ele, deveria ser usado para se fazer música, improvisar, experimentar, discutir e debater. "O mais importante é o debate e, nesse sentido, os problemas que surgem no decorrer do trabalho interessam mais do que as soluções", dizia ele, para quem a dúvida era a mola mestra de todo processo.

A alternativa proposta por Koellreutter aos currículos fechados é o que chamou de modelo de ensino circular, o qual consistiria em dispor em círculos os conteúdos adequados ao trabalho a ser realizado em cada etapa, considerando assim sua condição de interdependência, superando hierarquias e organizações sequenciais lineares. O currículo koellretteriano, nesses termos, considera a possibilidade de se trabalhar livre de uma ordem estritamente sequencial, o que implica em cada acontecimento disparando um outro, misturando possibilidades de realização, cruzando conhecimentos e conscientizando os conceitos envolvidos. A transcendência do pensamento dualista no processo educativo, com educadores e educandos constituindo partes de um todo e se influenciando mutuamente, era outra de suas metas.

 Desenvolvimento da criatividade

Koellreutter defendia a presença do espírito “criador” como algo vital ao ambiente do ensino artístico, o que seria incompatível com aulas guiadas exclusivamente por métodos e modelos programados, pois, desta maneira, os educadores minariam o espírito criativo, vivo e curioso dos alunos. Ao propor um sistema de educação que incita os indivíduos a se comportar perante o mundo “como um artista diante de uma obra a criar”, o músico reitera e reforça o conceito de consciência que propõe, o qual implica o inter-relacionamento constante e criativo entre corpo/mente/ambiente.

A abordagem pedagógico-musical humanista de Hans-Joachim Koellreutter - Foto: Hans-Joachim Koellreutter

Ainda sobre o “espírito criador” no ensino artístico, Koellreutter cunhou dois conceitos de ensino, o pós-figurativo e o pré-figurativo, os quais remetem a caminhos possíveis de ação pedagógica. Pós-figurativo, por exemplo, seria ensinar composição fazendo-se imitar formas tradicionais e reproduzir o estilo de outros músicos, ao passo que o ensino pré-figurativo envolveria incitar a criação de novas formas e novos princípios de estruturação.

Configurando uma postura didática contrária à transmissão de conhecimentos consolidados, o ensino pré-figurativo levaria o indivíduo a se comportar frente à criação como um artista livre de amarras. Diante de sua visão funcional do ensino musical, o desenvolvimento da criatividade nesses termos estaria de acordo com a dinâmica do mundo contemporâneo, no qual as transformações ocorrem em um ritmo cada vez mais acelerado, demandando das pessoas educação e formação permanentes.

Sobre o desenvolvimento da criatividade, Koellreutter aponta a improvisação como sua ferramenta central. "Não há nada que precise ser mais planejado do que uma improvisação. É preciso definir claramente os objetivos que se pretende atingir, ter um roteiro e, a partir daí, trabalhar muito, ensaiar, experimentar, refazer, avaliar, ouvir, criticar. O resto é vale-tudismo", costumava dizer.

 

(*) Fábio Carrilho é guitarrista, arranjador, professor e pesquisador musical. Licenciado e Mestre em Música pela Universidade de São Paulo, desenvolve pesquisa voltada ao ensino do instrumento com ênfase nas pedagogias abertas e na aprendizagem criativa.

instagram: @fabiocarrilho.guitarlessons 

Leia aqui a dissertação de mestrado de Fábio Carrilho Pedagogias abertas e o modelo artístico no ensino do violão para iniciantes

 

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